Cristiano Ronaldo, uma bola na marca de penálti, uma baliza e um Mundial. Um remate, golo, vitória de Portugal. Há 6.004 dias que separam 17 de junho de 2006 de 24 de novembro de 2022, tal como existem milhares de quilómetros entre Frankfurt e Doha. Podemos identificar outras diferenças — Ronaldo ser o 17 ou o 7, aplicar ou não uma paradinha na técnica de cobrança, ser o capitão ou a braçadeira estar com Luís Figo —, mas o essencial manteve-se. Finalização para a direita do guarda-redes e festejo.
Contra o Irão, em 2006, Cristiano aproveitou um castigo máximo para estrear a sua conta goleadora em Mundiais. Frente ao Gana, em 2022, outro penálti fechou os registos anotadores do único homem a marcar em cinco fases finais da maior competição global, imitando o logrado pela brasileira Marta.
Um golo em 2006, outro em 2010, mais um em 2014, quatro em 2018, no seu melhor torneio, e o último em 2022. Meio a conta-gotas narram-se os oito golos do português nas suas aparições no grande palco planetário, registo que o deixa a um da lendária cifra de Eusébio, conseguida apenas em seis encontros no Mundial de Inglaterra, em 1966.
Ronaldo, celebrando o primeiro golo em mundiais, contra o Irão
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No total, foram 22 encontros disputados pelo avançado que, neste momento, não tem clube. Na história, só Paolo Maldini (23 jogos), Miroslav Klose (24), Lionel Messi (24) e Lothar Matthaus (25) disputaram mais desafios.
A eliminação de Portugal contra Marrocos, foi, muito provavelmente, o fim da história do capitão da seleção, de 37 anos, nos Mundiais. As lágrimas que lhes escorriam continham, certamente, a consciência desse fechar de um ciclo que vai da Alemanha ao Catar, passando pela África do Sul, Brasil e Rússia. Numa publicação nas redes sociais, foi o próprio a admitir que “acabou o sonho” de “colocar o nome do nosso país no patamar mais alto do mundo”.
A relação de Cristiano com a competição envolveu três treinadores, umas meias-finais, uns ‘quartos’, dois ‘oitavos’ e uma fase de grupos, registo bem inferior ao conseguido nesta era Cristiano Ronaldo em Europeus — nos quais se registou um título, uma final perdida e umas ‘meias’.
Também a nível goleador, a preponderância de Ronaldo no torneio planetário é bem menos relevante que no continental. Em Mundiais, Cristiano nunca marcou na fase a eliminar, sendo os seus oito golos nos grupos. Já em Europeus, prova em que é o máximo anotador de sempre (14 golos), Ronaldo conta com dois golos em meias-finais e outro em ‘quartos’.
Alemanha 2006: dor, simbolismo e passagem de testemunho
Portugal entrou no quarto Mundial da sua história cheio de ambições. Com Scolari no banco, a espinha-dorsal do Euro 2004 mantinha-se, liderada por Luís Figo, a fazer o último torneio pela seleção, apoiada por gente como Deco e Ricardo Carvalho, pertencente à elite europeia - e por um Cristiano Ronaldo sobre o qual já recaíam enormes expectativas.
A estreia do ainda jovem madeirense num Mundial foi a 11 de junho de 2006. Contra Angola, Pauleta marcou cedo no triunfo (1-0) de Portugal. Seis dias depois, contra o Irão, surgiria a tal estreia a marcar do ainda CR17.
Contra Angola, em 2006, Ronaldo estreou-se em Mundiais. Portugal ganhou 1-0, golo de Pauleta
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Poupado contra o México, na terceira ronda dos grupos, Ronaldo voltou ao onze contra os Países Baixos. No entanto, o extremo foi a primeira vítima da “batalha de Nuremberga”. Uma entrada muito dura do futuro sportinguista Khalid Boulahrouz atirou-o para fora do jogo, sendo substituído ainda no primeiro tempo.
O duelo seguinte, frente a Inglaterra, também trouxe polémica. Outra vez com Ricardo como herói, Portugal venceu nos penáltis, com o decisivo a ser batido pelo madeirense, mas os ingleses não perdoaram Ronaldo por, no entender deles, ter ajudado a forçar a expulsão de Rooney por agressão a Ricardo Carvalho. O ruído gerado chegou a levar a acreditar que teria de sair do Manchester United, mas Sir Alex Ferguson serviu de mediador e o melhor de Cristiano em Old Trafford ainda estava por vir.
A seleção seria eliminada do Mundial pela França, golo de Zidane de penálti, perdendo depois no duelo de atribuição do 3.º lugar contra a Alemanha. Essa partida seria a última de Luís Figo por Portugal, a derradeira vez em que Cristiano esteve num torneio sem o n.º 7 nas costas. No Mundial seguinte já a seleção era capitaneada por Ronaldo enquanto Bola de Ouro e estrela galáctica.
África do Sul 2010: postes e o “falem com o Carlos Queiroz”
O primeiro Mundial disputado em África foi, também, o primeiro com Ronaldo como capitão. Face a 2006, havia já uma nova geração, com Pepe ou Fábio Coentrão, ainda que, face ao que seriam os anos seguintes, não houvesse o lesionado Nani nem João Moutinho, por opção de Carlos Queiroz.
Num campeonato com muitos conflitos antes, durante e depois do torneio, Ronaldo entrou na competição de costas viradas para o golo. Contra a Costa do Marfim, no nulo com que a seleção abriu a participação, atirou um grande remate ao poste. No duelo seguinte, na goleada (7-0) contra a Coreia do Norte, Ronaldo fez o mais peculiar dos seus golos em Mundiais, mas voltou a acertar no ferro, desta feita na barra.
Os problemas com Queiroz marcaram a saída do Mundial 2010
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Seguiu-se novo nulo, contra o Brasil, antes da eliminação (1-0) frente à Espanha. Num jogo em que Portugal passou muito tempo a correr atrás da bola, a frustração de Cristiano foi evidente.
Após o apito final, a frase que o capitão deixou ao passar pela zona mista foi marcante. “Falem com o Carlos Queiroz”, disse.
Na resposta, o selecionador foi duro com o avançado com quem, durante diversas temporadas, trabalhou no Manchester United. “Não estamos aqui para ser amigos dos jogadores. Se eu demorei quatro ou cinco anos de trabalho intenso para contribuir que o Cristiano tenha sido o melhor do mundo, se precisar de levar toda a minha vida para fazer perceber e ensinar às pessoas que as frustrações têm de ser contidas e dirigidas, vou fazê-lo”, comentou o técnico, acrescentando: “Se o tamanho da camisola for pequeno demais para algum corpo, não precisa de estar aqui”.
Brasil 2014: a pior fase final
A temporada 2013/14 levou, finalmente, o Real Madrid à conquista do ansiado décimo título de campeão europeu, com Cristiano como grande protagonista. No entanto, depois de uma época em que protagonizou, no play-off contra a Suécia, uma das proezas mais impressionantes com a seleção, o avançado chegou ao Brasil inferiorizado fisicamente.
Com Paulo Bento como técnico e praticamente a mesma equipa que chegara às meias-finais do Europeu anterior, o começo no Mundial 2014 foi um prenúncio do que se seguiria. O 4-0 contra a Alemanha deixou o país desconfiado da seleção.
A goleada (4-0) contra a Alemanha deu início ao Mundial 2014, o pior que Portugal disputou com Ronaldo
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Seguiu-se um empate (2-2) contra os EUA e uma vitória (2-1) contra o Gana, com golo do número 7, insuficiente para seguir em frente.
Foi a pior fase final de Portugal desde que, em 2003, Cristiano Ronaldo se estreou. Em todas as outras, a ronda dos grupos foi superada. Terminado o Brasil, Paulo Bento ainda orientaria a equipa na derrota (0-1), em Aveiro, contra a Albânia. Arrancaria, depois, o tempo de Fernando Santos.
Rússia 2018: aquela noite em Sochi…
Foi, indiscutivelmente, a melhor exibição de Cristiano Ronaldo em Mundiais, pertencente ao patamar dos mais brilhantes jogos de CR7 pela seleção, junto de partidas como a da Holanda em 2012, da Suécia em 2013 ou Suíça, em 2019. Portugal entrou na Rússia com um 3-3 contra a Espanha com um hat-trick do capitão.
Em Sochi, Ronaldo fez, em 90 minutos, quase metade dos oito golos que tem em Mundiais. No primeiro tempo, marcou de penálti e aproveitando um erro de De Gea. No segundo, aos 88', com os espanhóis na frente por 3-2, apontou um livre perfeito, vindo dos livros de estética para a realidade, adormecendo a bola no canto superior esquerdo da baliza rival. Aquele golo, aquele festejo, aquele encontro, foram o melhor que o melhor jogador português de sempre fez num Campeonato do Mundo.
Talvez o momento mais icónico de Ronaldo em Mundiais: o golo de livre à Espanha em 2018
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Depois da igualdade contra a Espanha, veio o triunfo (1-0) frente a Marrocos, com novo golo de Ronaldo no único torneio em que celebrou por mais do que uma vez. A participação no grupo B seria fechada com um empate (1-1) contra o Irão de Queiroz.
Nos oitavos de final, a seleção então campeã da Europa seria batida (2-1) pelo Uruguai. Um bis de Cavani respondeu ao golo de Pepe e ditou que Portugal caísse sem vencer qualquer duelo a eliminar pelo terceiro Mundial seguido.
Mundial 2022: a (quase) inédita suplência, o recorde e as lágrimas
O quase certo último Mundial de Cristiano Ronaldo começou envolto em polémicas. A entrevista com Piers Morgan e a saída do Manchester United foram os pontos altos de semanas cheias de ruído em torno do madeirense.
No primeiro jogo no Catar, contra o Gana, Portugal venceu por 3-2. Ronaldo apontou o já citado golo de penálti, tornando-se o primeiro homem a marcar em cinco fases finais diferentes da competição.
A participação na fase de grupos seguiu-se com o triunfo (2-0) frente ao Uruguai, no qual se deu o caso do desvio ou não desvio de Cristiano ao centro de Bruno Fernandes. A ronda inaugural fechou com a derrota (2-1) contra a Coreia, palco de nova polémica: a reação do capitão ao ser substituído, algo de que Fernando Santos “não gostou mesmo nada”.
A grande novidade surgiu nos oitavos de final, contra a Suíça. Ronaldo começou no banco, algo que não sucedia numa grande competição desde 2008, frente ao mesmo rival. Mas aí a seleção já estava apurada para os quartos de final, tal como já tinha garantido presença nos ‘oitavos' quando o avançado foi suplente contra o México em 2006.
Assim, desde o Euro 2004, contra a Rússia, que Ronaldo não era suplente num grande palco em que Portugal tivesse verdadeiramente algo em jogo. Nunca, desde o debute do português, tinha a seleção disputado uma partida a eliminar num Mundial ou Europeu sem Cristiano a jogar de início.
Uma imagem que marca o Mundial 2022 de Ronaldo: o avançado no banco
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Com Ronaldo a entrar aos 74', Portugal fez o melhor jogo no Mundial e goleou a Suíça. Após o jogo, chegou a ser noticiado, pelo jornal “Record”, que Cristiano ameaçara abandonar o estágio, mas a FPF negou essa informação.
A suplência do capitão voltou a repetir-se contra Marrocos. Com Portugal a perder, Ronaldo entrou aos 51'. Teve uma grande oportunidade nos descontos, mas Bono defendeu, a seleção foi eliminada e o avançado chorou.
Dá para fazer quase meia volta ao mundo começando na Alemanha, indo à África do Sul, voando para o Brasil, rumando à Rússia para depois terminar no Catar. Foi este o percurso de Cristiano Ronaldo em Mundiais, o que é igual a dizer que foi a viagem de Portugal nas últimas cinco edições da competição.
Uma excelente participação, em 2006 e ainda com Luís Figo como líder, deu lugar a amargos de boca nas edições seguintes. No meio de um futuro cheio de incógnitas, a ideia mais consistente, partilhada pelo próprio, parece ser a de que Ronaldo e Campeonatos do Mundo é uma história terminada.