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À grande e à portuguesa

Crónica de Jogo

Richard Heathcote

Portugal começou o Campeonato do Mundo com uma vitória, por 3-2, contra o Gana. Cristiano Ronaldo marcou o primeiro e tornou-se assim no primeiro homem a marcar em cinco edições do torneio. João Félix e Bruno Fernandes levaram a equipa para a frente

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

Foi talvez a versão mais simeonica de João Félix. Ironicamente, longe do Atlético de Madrid. O avançado, que com a bola pode fazer o que quiser, correu, foi ao chão, levantou-se, bateu e saltou. A seguir, ou nos entretantos dessa camada da labuta que quase desinteressa a quem prefere arte, foi artista: picou a bola por cima do guarda-redes ganês e meteu Portugal a piscar o olho à primeira vitória no Campeonato do Mundo.

O jogo, apesar dos cinco golos, é fácil de resumir. Primeiro, a calma e a serenidade com a bola no pé, com as trocas fáceis e fluidas, pareciam uma boa notícia. Não muito tempo depois, quando Portugal jogava apenas em “U” – ou seja, andava nos corredores rodando a bola por trás – percebeu-se que era afinal uma má notícia. Não havia muitos movimentos no espaço. A agressividade existia quando não havia bola, o que também não é pouco. Estavam todos comprometidos a reagir rápido e a recuperar a bola ferozmente. Mas quase nunca se jogou por dentro, o que facilitava a vida à parede composta por Salis Samed, Mohammed Kudus, que se comparou a Neymar e que teve alguns momentos geniais esta noite, e Thomas Partey, o belíssimo futebolista do Arsenal. Facilitava, mas também eram eles a explicação para a pouca aventura pelo interior. Quanto mais vezes tocavam na bola os dois últimos, Kudus e Partey, o que aconteceu na segunda parte, melhor estava no Gana.

O ambiente era frouxo. Eram mais adeptos de Cristiano Ronaldo do que da seleção portuguesa. Lá fora, os ganeses pintaram as ruas de todas as cores e de tantas danças e cantorias. Golearam na bonita e honesta festa.

Um erro na saída de bola permitiu a Portugal colocar Cristiano Ronaldo isolado. A receção parecia boa, mas a potência nas pernas não é a mesma para sair do lugar. Lawrence Ati cresceu e tapou uma glória que escondia um recorde eterno. Os 76% de posse de bola, aos 30’, significavam pouco, talvez sofriam-se poucos calafrios e esfriava-se os músculos de Diogo Costa, que ia aquecendo dentro da farda amarela. Fernando Santos, sozinho no confessionário pessoal, irritava-se com algumas decisões, como um cruzamento de Félix para fora quando só estava Cristiano na área.

Rúben Dias e Danilo iam negando as aventuras de André Ayew, sobrinho do nosso Ayew que andou pelo Boavista e Sporting, e Iñaki Williams, pouco solicitado no espaço. Ganhavam todos os duelos facilmente, jogando de frente pelo ar. Kudus ia-se soltando, mostrava que tinha uns pés e andamento admiráveis. Foi ele que, no início da segunda parte, acelerou de uma maneira impressionante, deixando para trás Otávio (sairia tocado, por William Carvalho), com uma rotação soberba, como se nunca tivesse ouvido falar em articulações e ossos.

Matthias Hangst

Portugal continuava sem saber furar o 5-3-2 dos pacientes ganeses, que, em cima do intervalo, tiveram dois cantos para insuflar a esperança. No meio-campo havia muita gente de Portugal, mas não havia maneira de deixar desconfortáveis os defesas. Os movimentos para trás de Cristiano, talvez impaciente por tocar pouco na bola, não ajudam a abrir espaços. Bernardo ia sofrendo de algo enigmático: parecia estar em todo o lado e em lado nenhum. Mas o que é certo é que ajudava a criar superioridades com bola atrás e, por isso, a manter a bola. Mas criava menos à frente.

Os adeptos no estádio ia cantando por Cristiano Ronaldo. Fora do 974 foi uma loucura pelo capitão da seleção portuguesa. Ouviram-se muitos “siiiii”. Quando perguntámos a um funcionário pela zona de media, se era a cinco ou a 10 minutos a pé, respondeu “sete”.

Seria por causa de Cristiano? Riu-se muito, feliz da vida.

Quando o número 7 sofreu o penálti, que deixou algumas dúvidas, já se adivinhava a história à frente dos olhos: Ronaldo é o primeiro homem a marcar golos em cinco edições do Campeonato do Mundo, imitando Marta do Brasil. Tocou Xutos no estádio, como se estivéssemos na apresentação do futebolista no Santiago Bernabéu. Já havia tocado antes do jogo.

O Gana subiu então as linhas. Kudus voltou a ameaçar, agora deixou as luvas de Diogo Costa a deitar fumo. Ayew, que leva no sangue o golo, empatou, após cruzamento de Kudus. A bola passou caprichosamente entre as botas de Danilo, que já denotara algum desconforto com a bola.

O jogo entrou depois no caos. João Félix meteu o 2-1, a passe de Bruno Fernandes. Rafael Leão, com mais um passe de Fernandes, meteu a bola à Henry, no ângulo raso mais distante. Já circulavamm fotografias do avançado que sorria durante a viagem da bola. Muitos dos 42.662 adeptos pareciam felizes.

Santos mexeu para tentar refrescar a equipa: entraram Gonçalo Ramos, João Mário e João Palhinha, saindo a aristocracia, Cristiano Ronaldo, Bernardo Silva e João Félix. A braçadeira de capitão saltou para o braço de William. Mas Portugal meteu-se mesmo em apertos, como gostamos todos de brincar, pensando em terços e máquinas calculadoras. Diogo Costa hesitou em duas ou três jogadas e levou uma senhora dura de Bruno Fernandes (uma vez, muito perto do fim, deixou-se surpreender por Iñaki, que ficou nas costas, imitando Ronaldo Fenómeno no Cruzeiro). Depois, Osman Bukari reduziu, celebrando à Cristiano e houve quem tenha alinhado na brincadeira na bancada. João Cancelo foi estranha e facilmente superado. Os centrais também não agarraram o avançado do Estrela Vermelha.

A estreia no Campeonato do Mundo, que já viu Argentina e Alemanha caírem, está resolvida, mas houve demasiadas fragilidades com bola. Faltou criatividade e formas de criar superioridade em zonas importantes e avançadas. Faltou rasgo, drible, tabelas ou qualquer coisa que furasse a barreira resistente do Gana. Houve sofrimento e final feliz. Enfim, João Félix resumiu na flash interview: “É à português, mais uma a sofrer. Mas, se forem todas assim, a ganhar, ‘tá tranquilo”.