Portugal - Uruguai. Sem sol e à sombra, Bruno foi feliz no relvado onde plantaram um arco-íris
28.11.2022 às 21h28

Matthew Ashton - AMA
Bruno Fernandes foi o autor dos dois golos na vitória de Portugal contra o Uruguai, no Estádio Lusail. Adepto invadiu o relvado, aos 52', com a bandeira do arco-íris e mensagens a favor da Ucrânia e mulheres iranianas. A seleção nacional está na próxima fase do Mundial
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Decorriam sete minutos da segunda parte, homenageando quem sabe o homem mais amado nesta terra, quando um ativista invadiu o relvado. Estava armado perigosamente com uma bandeira arco-íris e fintava os adversários que lhe surgiam pela frente com uma destreza maravilhosa. A t-shirt azul, com o símbolo do Super-Homem (talvez não seja mentira), levava no peito a frase “Salvem a Ucrânia” e, nas costas, “Respeito para as mulheres iranianas”. Foi o primeiro hat-trick do Campeonato do Mundo, no Catar. A certa altura, a bandeira soltou-se da sua mão e, por alguns segundos, pintou o relvado das cores da tolerância e do amor. Dois minutos depois, a história do jogo começaria a mudar…
A casa de Cristiano Ronaldo, qualquer estádio neste Campeonato do Mundo, não demorou muito a sentir o valor da esperança. Já na área, o capitão da seleção portuguesa deu uma peitaça na bola, na direção de William Carvalho, que jogou no lugar de Otávio. O remate acabou por viajar para longe, mas o feeling era bom.
João Cancelo parecia manter-se intermitente pela direita. Na esquerda, desta vez, jogou Nuno Mendes. O lateral do PSG fez algumas incursões no ataque até ser substituído, tocado, por Raphael Guerreiro. Cristiano ia simulando danças e divertia-se com a bola. O público beijava-o intensamente com os olhos.
O Uruguai, terra da pena de Benedetti e do arquiteto da glória e da justiça Obdulio Varela, entrou com uma versão conservadora. Havia um cheirinho a Tabárez e à garra charrúa. Sebastián Coates entrou para compor uma linha de cinco, ao lado de José María Giménez e Diego Godín, que disputou o metro quadrado com Cristiano Ronaldo, uma batalha de mil anos. À frente, outro trio: Fede Valverde (um anónimo esta noite), Matías Vecino e Rodrigo Bentancur, o que arriscava mais na pressão e que se armou algumas vezes em Álvaro Recoba, uma delas superou três rivais e só Diogo Costa, olhos nos olhos, travou aquela promessa de tragédia.
O jogo da seleção portuguesa, embora não muito venenoso e tampouco concreto a olhar para os três paus que descansam no horizonte, estava mais charmoso do que contra o Gana, quando raramente jogou por dentro e lateralizou demasiado. Desta vez, Rúben Dias e Rúben Neves encontravam futebolistas com a mesma farda uns metros mais à frente. Bruno Fernandes teria um jogo importante, completo. William era o responsável pelo jardim e Bernardo, mago da sensibilidade, tratava de regar as flores. Aproxima-se sempre do lugar onde era necessário, exatamente como explicou na véspera.

Richard Sellers
As patadas dos sul-americanos nas pernas dos rapazes de vermelho repetiam-se, tratavam de esquecer o que Galeano tanto suplicava. Às tantas Cristiano teve um livre prometedor, embora demasiado descaído para a esquerda. Não é a jabulani, a bola de 2010, mas Diego Forlán passou há pouco por nós e talvez tenha alguns segredos sobre esta ferramenta tão redonda e tão bela, que, à passagem da meia hora, passava 75% do tempo nos pés lusitanos.
As 88,668 pessoas no Estádio Lusail iam vendo a aula implacável de Pepe a Darwin, uma cópia do que fazia ao lado Rúben Dias com Edinson Cavani. O ex-avançado do Benfica só sabia desequilibrar como todos sabemos que pode desequilibrar: correndo pela esquerda, como um cavalo selvagem e livre de preocupações. Portugal tocava muito, havia segurança, algum descaro a jogar por dentro, mas raramente pisava a área uruguaia. Faltava algo no último momento. E nas bancadas também, o ambiente era pobre… a não ser que Cristiano abanasse o esqueleto por cima da bola de futebol. Aí, esta gente ganhava o dia a cada toque.
Bentancur ia fazendo um jogo assombroso com bola, com uma pedalada tremenda. Era o mais corajoso, fosse no passe ou na correria. A seleção uruguaia raramente fazia três passes seguidos. No início do segundo tempo, uma receção de Bernardo deixou-o com uma vantagem admirável. Lançou Félix e o futebolista do Atlético, que surgiu neste Mundial com a versão mais completa que já se viu, atacou a área e bateu com a canhota, para a rede lateral da baliza.
Mas o golo chegou a seguir. Bruno Fernandes levantou a cabeça, tocou para Ronaldo na área, a bola entrou e o capitão, feliz feliz, celebrou como se fosse dele. Mas a FIFA deu o golo ao médio do Manchester United, o ex-companheiro. O número 7, que realmente parece não ter tocado na bola, riu e depois tentou bater duas vezes na baliza, decisões infelizes que denotavam o aborrecimento pela decisão.

PressFocus/MB Media
E a bola começou a esquecer-se de visitar as botas dos portugueses. Os uruguaios subiram no terreno, Diego Alonso retirou Godín e Vecino e rompeu as amarras, com o talento de Giorgian de Arrascaeta e Facundo Pellistri. Se o futebol fosse justo, se o futebol quisesse saber dessas cantigas ocas, o Uruguai teria empatado nas inúmeras oportunidades que teve a partir daqui. Entretanto entraria em campo o ovacionadíssimo Luis Suárez. Estavam num 4-2-4 mentiroso, já que o criativo do Flamengo aparecia da esquerda para dentro. A melhor notícia de todas era que Darwin assim desaparecia, pois é menos influente no meio.
A bola já queimava para o lado português. Fernando Santos, desesperado, mandava subir. O travão de mão, desta vez, não parece ter vindo dali. Os jogadores sentiram a reação uruguaia. Acumularam-se más decisões. Rafael Leão (exibição infeliz) entrou por Rúben Neves e William passou para 6. A substituição surpreendia e talvez tenha tido alguma influência no caos que se viveu durante alguns minutos.
Depois, a filosofia de Santos passou então por uruguairizar Portugal, com João Palhinha, Matheus Nunes e Gonçalo Ramos. Ou seja, aplicação de energia e capacidade de cobrir áreas maiores. Mais: ganhava-se um futebolista especial no transporte de bola, Nunes. O 2-0 chegou de penálti, por mão na bola de Giménez. Bruno Fernandes deu o saltinho e confirmou mais uma noite descansada.
Os postes tilintaram duas vezes. Primeiro, o de Diogo Costa, cortesia de uma bomba de Maximiliano Gómez. Depois, foi Bruno Fernandes, já em cima do minuto 90, a tentar de longe, o que completaria o segundo hat-trick do Mundial, se contarmos com o que mencionámos no início do texto. Seria uma justa e gloriosa recompensa pela bela exibição.
Portugal está assim apurado para os oitavos de final do Campeonato do Mundo, no Catar. Vislumbraram-se algumas melhorias na forma de jogar, mas também a incapacidade para pisar a área alheia. A segurança com a bola no pé foi de uma riqueza sublime. Já o que se passou no intervalo entre o 1-0 e o 2-0 foi um completo desvario, cheio de incertezas e dúvidas. Haverá tempo para corrigir e, sem pressão na derradeira jornada contra a Coreia do Sul, afinar as ideias.
No fim, voltou a tocar Xutos e Pontapés, com “A minha casinha”. Não passa de uma inocente ironia, pois ninguém quer pensar em ir para a casa tão cedo…