Portugal - Marrocos. Faltou arte contra os eternos e famintos marroquinos
10.12.2022 às 17h41

Alex Grimm
Um golo de Youssef En-Nesyri, perto do intervalo, acabou com a história dos portugueses neste Campeonato do Mundo (0-1), o último para futebolistas como Cristiano Ronaldo e Pepe. Tal como em 1986, Marrocos volta a afastar deste torneio Portugal, que foi demasiado previsível e temeroso, quem sabe com medo das correrias de Boufal e Ziyech
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O vento e o frio que se meteu este sábado em Doha, algo que não é normal, levantou as sobrancelhas de alguns. Como se alguém estivesse a destapar um segredo. Durante o jogo que colocou olhos nos olhos a surreal resistência marroquina contra alguns dos melhores artistas do futebol mundial até a lua subiu e subiu para conseguir olhar para dentro do anel do Al Thumama. Depois de tantas bolas sem consciência enviadas para a área e do céu incerto, a única chuva que caiu foi dos olhos de Cristiano Ronaldo, que saiu do relvado em lágrimas, chorando como um menino, chorando como chorou quando perdeu a final do Euro 2004.
Ao contrário do que tem acontecido, por Cristiano é certo, Portugal jogou fora esta noite. Os marroquinos têm pintado as famosas e mais belas ruas de Doha com alegria e cantorias. Depois de eliminarem a Espanha, que se dizia sem veneno para superar tal barreira, caiu Portugal. Marrocos está na semifinal do Campeonato do Mundo, o que é a primeira vez de uma equipa africana. O selecionador, Walid Regragui, avisara que queriam fazer história. “Muitos rezam por nós”, disse na véspera deste jogo. “Atingimos algo grande, mas não chega. Temos de lutar. Surpreendemos muitos: os algoritmos, os muitos dados, todos estes dados e cálculos pensaram que sabiam quem ganharia o Mundial, mas queremos mostrar que estamos aqui e que temos fome.” Tremenda gente.
Os assobios foram uma constante durante o mole e mastigado jogo dos portugueses. Rúben Neves substituiu William Carvalho no 11, talvez pela capacidade de acelerar com bolas longas, mas o plano saiu ao lado. Portugal foi incapaz de entrar no miolo da curta equipa africana e esbanjou muitas bolas. Houve receio de jogar por dentro, voltámos aos tempos do travão de mão, quem sabe com medo das correrias serpenteantes e belas de Sofiane Boufal e Hakim Ziyech. Outro tema é a ausência de dribles e capacidade para superar rivais e criar desequilíbrios. Um dia ainda se vai olhar para a ausência de fintas e dribles com a gravidade e lamento que a falta de água provoca.
Do outro lado estava uma equipa curta como os tapetes mais curtos e rigorosos, mas faltou arte, arrojo e coragem. Bernardo, que estava onde era necessário para manter a segurança da posse de bola, também não descobria maneira de desmantelar esta espectacular organização comprometida e incansável. O criativo do City estava longe do lugar onde podia fazer mossa e, mais importante, parecia estar sem bateria.
Se a seleção portuguesa era muitíssimo previsível, do outro lado era tudo o contrário. Marrocos demonstrou que com uma proposta de jogo essencialmente defensiva e paciente pode meter vertigem, drible, veneno, alegria e fantasia no jogo. Era um deleite ver como jogavam Azzedine Ounahi, o tal rapaz que maravilhou Luis Enrique, mas também o que os laterais, Achraf Hakimi e Yahia Allah, iam aportando ao jogo africano. A dinâmica é boa e deixava muito desconfortáveis os rivais, que só iam usando e abusando dos passes longos. Os médios iam baixando demasiado para perto dos centrais supostamente para desbloquear a saída de bola, mas a seleção nacional perdia peças à frente.

Soccrates Images
No fundo, Portugal confundiu paciência com outra coisa qualquer que não se traduziria em jogadas perigosas ou golos. Boufal ia sendo o rei do drible, a forma como o corpo deste futebolista virtuoso cambaleia pertence quase a um museu das coisas raras e belas como diamantes. Os adeptos, nas bancadas, mantinham os assobios e celebravam cortes como se fossem golos. A ilusão é tudo e, se em algum momento faltaram pernas aos marroquinos, aquela gente tratou de ser o vento nas costas que precisavam.
João Félix, que foi do anonimato para alguns momentos em que foi a única ameaça para depois voltar ao anonimato, nunca teve verdadeiramente a bola de frente para a baliza, o pão por que implora todos os dias. Bono ia fazendo uma exibição segura, até com os pés o homem que adora o River Plate e Ariel Ortega é bom. E é já uma das histórias bonitas deste Campeonato do Mundo, sobretudo porque não sofre golos mas também pelo que fez diante da Espanha.
Já perto do intervalo, Allah sacou um cruzamento que parecia inofensivo para Diogo Costa e Rúben Dias, mas ambos permitiram o salto glorioso de Youssef En-Nesyri, que inaugurou a loucura no Al Thumama. Portugal, em desvantagem, respondeu com uma bola na barra de Bruno Fernandes, à Van Basten, e depois com demasiado nervo, procurando sacar faltas. A ansiedade apoderou-se da alma dos futebolistas portugueses como se faltassem apenas oito minutos para o final da partida.
O frio no estádio já não tinha piedade dos ossos. Nem os marroquinos, guerreiros estóicos que não deixavam de olhar para a frente. Através de uma bola parada, estiveram perto do 2-0. Fernando Santos nada mudara ao intervalo. E, aos 51’, entraram finalmente João Cancelo e Cristiano Ronaldo, que, embora pouco solicitado, esteve bem em algumas ações, funcionando como pivô e tomando boas decisões, estando até perto do golo uma vez. Valeu Bono, novamente. O capitão da seleção portuguesa mostrou aqui e ali o seu estatuto de semideus ao manter a cabeça fria e sem estridências, puxando os colegas para o jogo, numa altura em que os nervos e as distrações mordiam o foco.

Alex Grimm
Bernardo ia jogando mais como 6, era quem iniciava o jogo. Portugal começou a encontrar espaço pela direita, com combinações entre Diogo Dalot e Bruno Fernandes, que ia assumindo a bola e tentava inventar espaços e companheiros em vantagem. Mais uma bola pela direita escancarou o empate para Gonçalo Ramos, mas o jovem não estava com a afinação do jogo anterior. Bono soltava um sorriso aliviado. O jogo começava a ter momentos em que estava partido, embora Marrocos fosse mantendo o seu jeito compacto. Era um exercício de resistência bonito de assistir, com milhares a puxar por eles, à procura de um lugar na história do futebol. Sofyan Amrabat ia orquestrando tudo.
O pé de Bruno quase garantiu o empate, que parecia uma promessa inevitável. Passou tão perto da barra. O selecionador marroquino refrescava a equipa. Fernando Santos, aos 69’, colocou então em campo os futebolistas que pareciam talhados para este jogo: Vitinha e Rafael Leão, que na primeira ação deixou dois adversários para trás. Os portugueses, que pediram um ou outro penálti durante o jogo, tiveram alguns cantos e a consciência desabafava à inconsciência que algo libertador e belo teria de acontecer. Uma correria a mil à hora de Dalot, mais uma, deixou-o agarrado à perna. Entrou Ricardo Horta para o seu lugar. Os marroquinos também iam caindo no relvado como se fossem baixas de guerra, em agonia, a pedir clemência.
Félix ensaiou o que seria um golaço imortal, com a canhota. Mas Bono, que aprendeu a defender penáltis em 1990 a ver Sergio Goycochea, que anda por aqui nos bastidores a fumar charutos, voltou a ser o herói que colou Marrocos ao sonho quase impensável. A fome mantinha-se.
O jogo de Portugal já era um desvario. A dimensão mental é implacável e torna-se difícil jogar debaixo de tanta pressão, em que cada bola conta. Walid Cheddira viu dois amarelos praticamente seguidos, no longo e quem sabe curto desconto de tempo (8’), e deu alguma vantagem aos portugueses para os suspiros e desesperos finais. Foram muitos cruzamentos, até de uma posição frontal, o que é incompreensível, mas iam tentando de todas as maneiras. Pepe teve num cabeceamento o momento que mudaria a vida de todos estes futebolistas. Mas a bola não quis entrar, não quis ser como em 2016, e deu um beijo na testa para quem se lembra da frustração de 2004… ou de 1986, contra estes mesmos marroquinos. “Queremos fazer história, inshalla”, disse na véspera Walid Regragui. E aí vão eles.