A desgraça de adiar o inevitável
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01.05.2023

No sábado, uma cidade e um povo voltaram a mostrar como há 33 anos que estão prontos a explodirem com a força da memória de um ídolo
KONTROLAB
Caísse alguém alienígena à vida em sociedade no San Paolo, no sábado, desprovido de todo o contexto, como se fosse um eremita virado turista que um dia se lembrou de partir à caça das maravilhas intangíveis do mundo, e julgaria ter entrado no anfiteatro onde se batalhava pelo destino da humanidade, pelo menos as vidas dos familiares de quem corria de azul na relva estariam em jogo. Só podia, perante as veias inchadas em pescoços e a rouquidão de gargantas a ressacarem de tanta berraria no histerismo coletivo que fez tremer uma arena nos derradeiros 10 minutos.
Qualquer bola saída do campo punha jogadores do Nápoles a esbracejar nervosamente para que outra fosse posta em jogo. Qualquer remate, por mais que inofensivo ou arrepiador de espinha pelo cortejo ao perigo, fazia das mãos levadas à cabeça o mínimo dos gestos vistos nos futebolistas. Um jogo de futebol transformara-se em exercício coletivo de desespero injustificado desde que Boulaye Dia, incógnito e irrelevante para a festa pretendida, rematou um pedaço granítico de gelo para a baliza de Alex Meret, aos 84 minutos. De repente, um golo pareceu ser um espelho e obrigou os jogadores verem o reflexo da sua mortalidade, esquecendo-se do poder da razão.
Não foi, com certeza, a racionalidade a jogar a quase dezena de minutos (com descontos) ainda disponível para a pressa entrar como madrasta de uma síndrome especialmente napolitana. O mais espampanante dos nervosos era Victor Osimhen, o providenciador de golos deste Nápoles, homem que tem 18 parafusos no crânio e joga de máscara posta desde a colisão com um adversário, na época passada, que lhe estilhaçou parte da cara. O nigeriano corria na direção de apanha-bolas a cada exemplar que saía de campo, abanava a cabeça em desespero após um passe falhado, vestia o corpo com postura de desalento a cada tentativa frustrada da equipa em reaproximar-se da baliza. Antes, aos 62’, celebrara o golo de Mathías Olivera como se o tivesse marcado, cheio da exuberância que pulsa nas artérias de um povo.
Será um vírus a que vivalma é imune. Esta é a terceira época de Osimhen em Nápoles, pouco tempo na escala de idolatria que prefere feitos a longevidade, e o empate deste fim de semana não vai rabiscar, muito menos apagar, os murais de edifícios já pintados com a sua figura pela cidade. Arrisco-me a deduzir que nenhum ou muito poucos jogadores dos partenopei não estarão pintados, pendurados fotograficamente num estendal ou terão o seu nome rabiscado em alguma parede de Nápoles. Façam como eu, ganhem tempo (serão horas, fica o aviso) a pesquisar por fotografias das ruelas aprontadas para a festa no lugar de sonhos e misticismo, de sã loucura e desmiolada veneração, e compreenderão Osimhen.
O nigeriano ainda nada ganhou com o clube, tem cerca de zero títulos conquistados na carreira e naqueles 10 minutos, à semelhança dos restantes jogadores com quem partilha equipa, parecia um louco a tentar evitar um descalabro. A etiqueta dos €71 milhões que custou para estoirar o recorde de transferências do clube, em 2020, terá o seu peso na consciência do dever sentido pelo avançado, mas não explica sozinha a sua absorção por um desespero infundado: o empate com a Salernitana de Paulo Sousa, o elétrico treinador que não parou no banco, possivelmente energizado pelos mesmos nervos a pairarem no ambiente, mantém o Nápoles com 18 pontos de vantagem na liderança da Série A quando restam seis jornadas por realizar.

Em Nápoles, há muito que parece ser carnaval: as ruas da cidade estão decoradas e mascaradas com os seus heróis futebolísticos
NurPhoto
O Nápoles será campeão de Itália, nem a matemática das hipóteses arranca a rotulagem dessa previsão - é uma inevitabilidade. Há muito que a equipa do melhor ataque, da melhor defesa e do futebol mais espetacular do campeonato italiano se embalou para o título que lhe foge há 33 anos, numa obesa espera a que se traça a origem da fuga dos napolitanos ao que é racional, onde se entende o porquê de um povo se ajoelhar perante a veneração de coincidências. Em 1990, conquistou o segundo scudetto da sua história, o segundo com Diego Armando Maradona, filho adotivo de um lugar pobre e gozado pelo norte de Itália, que virou deus adotado pela insurreição futebolística (também ganharam uma Taça UEFA) que liderou contra traumas instalados por arrufos regionalistas.
Quando, já instalados na liderança da liga, viram a Argentina na final do Mundial no Catar, os napolitanos pularam de cabeça para a barcaça dos paralelismos e remaram juntos na coincidência de também os sul-americanos terem jogado no pico do futebol no ano da última conquista. Os anos de desilusões e frustrações, descidas de divisão, equipas de qualidade trémula, que restauraram a sensação de impotência numa cidade desprezada por um país, foram acumulando o que agora pintalga as paredes de Nápoles com as figuras de ídolos atuais e passados e agita coletivamente uma população ao ponto de sismógrafos detetarem o entusiasmo. No sábado, a fumarada azul a dar neblina ao skyline de um lugar antes afamado pelo cheiro a lixo acumulado foi só mais uma amostra de uma erupção a aguentar-se a ela própria há demasiado tempo.
Há traços compreensíveis para quem é fã de futebol, assiste de fora a tudo isto e crê na mão invisível da justiça divina a funcionar. O clube queria festejar a conquista do scudetto à frente dos seus, no estádio que já não é San Paolo mas Diego Armando Maradona, com uma estátua do ídolo máximo à saída dos balneários que o treinador, Luciano Spalletti, toca no pé esquerdo antes de entrar em campo. “Peço desculpa a estes adeptos maravilhosos, mas estes são os pontos mais difíceis de ganhar”, disse, a ter de pedir perdão por nada e por tudo ao mesmo tempo, sabedor de que a vitória selaria a farra e que agora o Nápoles pode ser campeão no sofá (se a Lazio não ganhar na quarta-feira) ou na longínqua Udine (se vencerem na quinta-feira) já esta semana. O inevitável poder ser adiável só dá mais loucura a tudo isto.
Tenham que aguardar pelo retorno da equipa à cidade ou esperar mais uma semana para celebrarem no seu estádio, os napolitanos serão campeões de Itália, que estes dedos sejam vergastados a chicote se a maior das hecatombes da história, por acaso, decidir aparecer. Este Nápoles à espera da sua ebulição é prova de que é a emoção, mesmo a mais irracional, que sustém o futebol. “Sabemos que esperaram muito, só vos pedimos que aguentem um pouco mais”, escreveu o clube aos seus adeptos, no sábado. Imaginem a ânsia desse pedido.
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Zona Mista
Tivemos de novo um grande acidente com o Miguel, que foi outra vez 'arrumado' por outro piloto. Ser colocado fora da corrida ao fim de duas voltas é desapontante.
Wilco Zeelenberg, diretor-desportivo da RNF Aprilia, reagindo ao aparatoso choque em pista que, pela segunda vez esta temporada, retirou Miguel Oliveira de uma corrida do MotoGP logo no seu arranque. O português já pouco durara em Portimão, na tirada inaugural do ano, e voltou a sofrer no alcatrão com a falta de destreza alheia. O piloto de Almada deslocou o ombro esquerdo e veremos se ficará privado de participar em mais provas devido à maleita. Sarcasticamente, Miguel Oliveira escreveu no Instagram: “Este início de ano é de longe aquele que idealizei. Hoje a sorte bateu à porta outra vez”.
O que vem aí
Segunda-feira, 1
⚽👩 Joga-se a 2.ª mão das meias-finais da Liga dos Campeões feminina entre o Arsenal e o Wolfsburg, após o 2-2 do primeiro jogo. Pela primeira vez na história, o Emirates, em Londres, terá um estádio com lotação esgotada para uma partida jogada por mulheres (17h45, YouTube).
🎾 Prossegue o Masters 1000 de Madrid, que já vai nos ‘quartos’ (diariamente a partir das 12h, Sport TV).
Terça-feira, 2
🏀 Segundo jogo entre os Denver Nuggets e os Phoenix Suns nas meias-finais dos play-offs da Conferencia Oeste da NBA (3h, Sport TV1).
⚽ A Premier League volta a presentear-nos com jogos grandes a meio da semana: o Arsenal recebe o Chelsea (20h, Eleven Sports 1).
Quarta-feira, 3
🏀 Os Miami Heat e os New York Nicks encontram-no primeiro encontro das meias-finais da Conferência Este da NBA (00h30, Sport TV3).
⚽ Na América do Sul, o Red Bull Bragantino treinado por Pedro Caixinha é visitado pelo Estudiantes de la Plata (1h, Sport TV6) na fase de grupos da Copa Libertadores. Mais tarde, será mais um potencial dia de festa por Itália: caso a Juventus não ganhe ao Lecce (17h, Sport TV1) e a Lazio não vença o Sassuolo (20h, Sport TV5), o Nápoles garante a conquista do scudetto no sofá.
Quinta-feira, 4
🏀 Segunda partida das ‘meias’ da Conferência Este da NBA entre os Boston Celtics e os Philadelphia 76ers (1h, Sport TV3).
⚽ Se ambos os cenários não se juntarem, os partenopei terão de vencer a Udinese (19h45, Sport TV1), em Udine, para não adiarem mais a festa. Por cá, o Famalicão acolhe o FC Porto (20h30, RTP1) para a 2.ª mão das meias-finais da Taça de Portugal.
Sexta-feira, 5
⚽ Arranca a 31.ª jornada da I Liga com o Casa Pia-Portimonense (20h15, Sport TV1).
Sábado, 6
⚽ Mais I Liga: Santa Clara-Gil Vicente (15h30, Sport TV1), Boavista-Estoril Praia (18h, Sport TV1) e Benfica-SC Braga (20h30, BTV). Na Série A, um grande e decisivo jogo espera a AS Roma de José Mourinho contra o Inter (17h, Sport TV2). Na Ligue 1 francesa, o 3.º classificado Lens recebe o 2.º que é o Marselha (20h, Eleven Sports).
Domingo, 7
🏎️ Em Miami, corre-se o GP dos EUA em Fórmula 1 (20h30, Sport TV).
⚽ Continua a I Liga: Marítimo-Rio Ave (15h30, Sport TV1), Vitória-Vizela (18h, Sport TV3) e Paços de Ferreira-Sporting (20h30, Sport TV1). Na Premier League, o Newcastle é anfitrião do Arsenal (16h30, Eleven Sports) em mais um espinhoso jogo para os londrinos.
Hoje deu-nos para isto

Os jogadores da União de Leiria unidos na festa da subida à II Liga, no sábado
@NB/ShootHappens
Eram quatro meses de salários por pagar ao plantel de uma equipa da I Liga, o cume do profissionalismo no futebol de um país que o inspira e expira em cada respiração, que levaram 16 jogadores da União de Leiria fartarem-se. Fez, no sábado, 11 anos desde a feia consequência do desgoverno de uma instituição inculcou uma das mais tristes memórias no desporto em Portugal - no desfecho do campeonato nacional, um clube apresentar-se com apenas oito jogadores para um encontro, supostamente, da nata do nosso futebol.
A 29 de abril de 2012 relatou-se a chegada ao estádio quase em cima da hora de John Ogu, conduzido em carro de um dirigente do clube e já sem tempo sequer para aquecer os músculos, convencido com sucesso a sair da rescisão coletiva de contrato; também Alphousseyni Keita foi convencido a abdicar do pé batido contra o desrespeito pelos compromissos deixados a escrito, mas, já no estádio da Marinha Grande, o então presidente, João Bartolomeu, acusou-o de fugir das instalações do clube com uma mala de dinheiro e nem apareceu em campo. Só oito jogadores da União de Leiria o fizeram nesse dia e três estavam emprestados por outro clube.
A presenciarem essa triste amostra da União massacrada por má gestão financeira na antepenúltima jornada de 2011/12 estavam 1.278 pessoas, muitas terão sentido o figurativo punhal do desgosto futebolístico a atravessá-las quando o clube caiu aos trambolhões para fora do futebol profissional. Neste sábado, a 29 de abril de 2023 e um calor dos diabos a esquentar o fim de semana, havia 22.197 adeptos no Estádio Municipal de Leiria a verem um jogo da Liga 3.
A União ganhou, garantiu o regresso às divisões onde ser futebolista é mesmo ofício único e provou, se fossem necessárias mais demonstrações, como o safanão de uma tragédia pode ressuscitar um clube para a benfeitoria das coisas. Hoje, em Leiria, mora a equipa que bateu o seu próprio recorde de assistência na Liga 3 (o anterior era 18.124) e passou esta época a povoar os seus jogos caseiros com mais de uma dezena de milhar de adeptos porque fez por se reaproximar a uma cidade, a um povo e à emoção: reavivaram a mascote (que já tem agenda própria), oferecem bilhetes aos sócios, montam arraiais e churrascos no estádio antes dos jogos. Em agosto, o diretor de comunicação do clube disse-nos uma frase que escondia o que não deveria ser segredo: “Percebemos o que os adeptos queriam para vir, que teríamos de estar mais junto da comunidade.”
Desfrute, não trabalhando se for caso disso, deste feriado de trabalhador e tenha uma boa semana. Obrigado por nos ler e acompanhar no site da Tribuna Expresso, onde poderá seguir a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos também no Facebook, Instagram e no Twitter.