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Em Leiria não querem o futebol como “bem de luxo” e a comunidade voltou ao estádio: eis o que levou 12.581 pessoas a um jogo da Liga 3

Este domingo, no Magalhães Pessoa, em Leiria, estiveram mais de 12 mil adeptos a acompanhar o União-Vitória, a contar para a jornada inaugural da Liga 3. De todas as categorias, aquela espécie de clássico do futebol português foi só superado por outro clássico, o FC Porto-Sporting, que teve 49.430 pessoas no Estádio do Dragão. A Tribuna Expresso esteve à conversa com André Lucas, o diretor de comunicação do clube, para perceber o que aconteceu este fim de semana

Hugo Tavares da Silva

Paulo Costa Dias | União Desportiva de Leiria

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Numa qualquer e desinteressante viagem à arrecadação da sede da União de Leiria, numa altura em que a nova administração e staff do clube já haviam decidido que era tempo de uma reaproximação à comunidade, um saco grande e esquecido intrigou presidente e companhia. Perguntaram o que era. “A mascote”, ouviram, que só em duas ocasiões teve vida própria. “Vimos uma oportunidade grande”, admite André Lucas, diretor de comunicação.

Essa descoberta ocorreu durante a segunda fase da Liga 3, há não muito tempo. A mascote voltou a respirar num jogo, tal como este domingo, com o Vitória de Setúbal. “A partir dessa semana tive de fazer uma agenda à parte só para a mascote. Fomos a dezenas de escolas, instituições, bombeiros voluntários, câmara, instituições públicas, lojas do cidadão, fomos a patrocinadores também. A minha semana era quase feita disso, isso trouxe uma aproximação grande [às pessoas], fizemos uma campanha grande”, conta, animado.

Serve esta conversa e as lembranças resgatadas para marcar o que se passou este domingo: o jogo entre União e Vitória de Setúbal, a contar para a primeira jornada da Liga 3, teve 12.581 pessoas no Municipal de Leiria, só ficando atrás do clássico entre FC Porto e Sporting, no Estádio do Dragão, com 49.430 adeptos.

A primeira pergunta, aliás, é mesmo assim: “O que se passou, no domingo, em Leiria?”. A resposta foi automática: “Passou-se a festa do futebol. Foi visível. Era muita gente, ficámos muito felizes. Foi uma festa boa para todos, para os adeptos da União, do Vitória e para os adeptos do futebol em geral. Resultado à parte, a festa foi bonita e foi bonito”. O resultado foi 4-0 para a União, ausente da 1.ª Liga desde 2011/12, com um hat-trick de Gonçalo Gregório, naquela que foi a estreia de Vasco Botelho da Costa, o ex-treinador dos sub-23 do Estoril Praia, onde conquistou duas dobradinhas em dois anos.

NB©ShootHappens | União Desportiva de Leiria

Esta é a história da forma como um clube, um grande do nosso futebol, com um estádio enorme, escolheu reaproximar-se dos seus adeptos, das suas gentes, da comunidade. O “trabalho” começou no ano passado, conta André Lucas, visivelmente orgulhoso. Sentenciou-se, em reuniões de cartolas e conversas informais, que um clube daqueles não podia ter 200 ou 300 pessoas, em média, no estádio a apoiar a equipa. Queriam mais. Era necessário cativar o povo. Fizeram-se estudos, analisaram-se percepções. Definiu-se o primeiro objetivo: devolver pessoas às bancadas do Municipal de Leiria.

“Percebemos o que os adeptos queriam para vir”, reflete. “Percebemos que teríamos de estar mais junto da comunidade. Não estamos na fase de esperar que as pessoas venham até nós, mas antes nós irmos ter com as pessoas. É quase transversal a todos os clubes, sem contar com os três grandes: acho que os clubes têm de fazer esse caminho de se aproximarem da comunidade.”

A festa do futebol deveria começar antes do jogo de futebol, definiu-se nos gabinetes do Magalhães Pessoa. Dinamizaram, nas imediações do estádio, o comércio local, explica Lucas. “Daí surgiu a fan zone. Foi aos poucos, começámos a ter ideias, começou a aumentar de tal forma que construímos este conceito da fan zone para as pessoas virem, as famílias, em horários convidativos.”

A ideia de trazer mais gente para o estádio foi inaugurada definitivamente na época passada. Os bilhetes, que custavam €2,5, deixaram de ter custo, pois não fazia uma diferença importante para a receita e entenderam que era um fator decisivo para as pessoas, até porque uma ida ao futebol em família multiplica as despesas, seja com bilhetes, alimentações ou deslocações. “Queríamos fazer passar a mensagem de que o futebol não pode ser um bem de luxo”, diz o diretor de comunicação do clube.

Após as mudanças – mascote, preços de bilhetes e campanhas em escolas, instituições públicas, etc. –, os números gritavam novos ventos. Se no último jogo da primeira fase da Liga 3, na última temporada, estiveram cerca de 300 pessoas no recinto, no primeiro jogo da segunda fase foram 5.000, com o Vitória. Depois, 7.000 com o Sp. Braga B e 13 mil com a Oliveirense. Mais tarde, no play-off, vislumbraram-se 15 mil contra o Alverca, “o atual recorde da Liga 3”, vinca.

Paulo Costa Dias | União Desportiva de Leiria

Este domingo deu-se um verdadeiro evento no Municipal de Leiria. “Ontem [21 de agosto] tivemos aqui muitas famílias de várias gerações”, continua André Lucas. “Depois, temos a mesma perspetiva com o futebol que tem a Liga 3: deve ser sobre rivalidades dentro do campo, com respeito fora dele. Daí termos convidado o Toy, que é adepto assumido do Vitória, o Quim Barreiros porque é o Quim Barreiros e o Kura, um artista conhecido – quisemos ter alguém para o público mais novo e que fosse de Leiria. Quisemos, acima de tudo, independentemente do resultado dentro de campo, que não deixasse de ser uma festa para as famílias e um domingo bem-passado.”

Afinal, “o futebol tem muito impacto na vida das pessoas”. A ideia do clube passa por oferecer segundas-feiras mais simpáticas às gentes da terra, e, porque não?, aos adeptos adversários também. A segunda-feira de André Lucas foi realmente simpática.

“Temos pessoas a comentar no Facebook e a mandarem-nos mensagens. É raro os adeptos mandarem e-mails. Eu tinha 20 e-mails de pessoas a pedirem camisolas e outros para se fazerem sócios, disseram que passaram uma bela tarde”, desabafa, com prazer.

NB©ShootHappens | União Desportiva de Leiria

As pessoas gostam de futebol, afiança o dirigente. Mas é preciso corresponder, ter bancadas limpas, bares disponíveis, escorregas para a garotada, animação, sombras e, enfim, aquelas pequenas dignidades que transpiram conforto. Ou até, quem sabe, um lugar para se reencontrar amigos. Apesar de não haver receita, há outro ambiente no estádio, e isso é uma vitória, ajuda também a entusiasmar os jogadores, admite, recordando ainda o momento especial que se viveu na receção ao autocarro da equipa.

A logística, a longa semana, foi quase um pesadelo, diz sem o dizer por estas palavras. E a criatividade parece ser prato da casa: as freguesias do concelho que aderem à iniciativa têm bilhetes com carimbos diferentes e aquela que mais gente levar, em percentagem, terá a ajuda do clube para uma instituição daquela freguesia, dando robustez à “responsabilidade social” de todos os intervenientes, sinaliza ainda André Lucas.

Resumindo, os bilhetes vão continuar a ser gratuitos nos jogos em casa da União de Leiria, que começou com dois ou mais pés direitos. A fan zone terá também, ao que parece, longa vida, ainda que não seja possível garantir espetáculos do gabarito deste domingo que passou. Os números de adeptos no estádio e na festa dominical terão deixado a cidade orgulhosa, já que até superaram a soma de adeptos no Sp.Braga-Marítimo, que recebeu 12.358 pessoas.

“Valeu por tudo”, resume André Lucas. “Valeu pelo feedback das pessoas que gostaram da festa e que disseram que queriam voltar.”