Tribuna Eventos - Mundial 2022

O sabor e o significado das lágrimas

O sabor e o significado das lágrimas

Pedro Barata

Jornalista

Um solitário andar de 50 metros, desde a área até aos balneários, como um protagonista saindo de cena. Um caminhar cabisbaixo entre os festejos alheios, as celebrações da primeira equipa africana e árabe nas meias finais de um Mundial, como se os guionistas tivessem colocado alegria e euforia em torno daquele recolher triste, evidenciando mais o contraste de sentimentos. Lágrimas escorrendo face abaixo.

O adeus de Portugal ao Mundial 2022 é, também, o mais que provável fim de Cristiano Ronaldo na mais importante prova global. É assim há duas décadas: a história do madeirense funde-se com a da seleção, a equipa que bebeu da ambição do maior goleador de sempre no jogo de seleções para conseguir os melhores resultados dos seus quase 101 anos de existência.

Aquelas lágrimas de Cristiano soaram a choro de adeus. Não que o lendário avançado se vá retirar, mas muito dificilmente o voltaremos a ver na competição que, de quatro em quatro anos, centra os olhos do planeta em torno da bola. E, ao olhar para aquela face do Ronaldo de 37 anos, é muito difícil que as gavetas da memória não se abram. Onde é que já tínhamos visto aquelas gotas de emoção naquela face?

Lisboa, 4 de julho de 2004. O golo de Charisteas terminara com o mês das bandeiras às janelas, da Nossa Senhora de Caravaggio, do Ricardo sem luvas, do anúncio de televisão em que o país se transformava num enorme campo de futebol, de Nelly Furtado e do “estou convocado”. E levou às lágrimas o mais entusiasmante projeto de talento jovem que brotou do Euro 2004.

A imagem de Cristiano Ronaldo a chorar no relvado da Luz é das mais icónicas daquela noite. Naquelas semanas, o madeirense do número 17, com uns fios de esparguete na cabeça e um futebol audaz e por vezes circense, confirmou as condições que fizeram Sir Alex Ferguson contratá-lo. Mas a muralha grega não foi derrubada, tal como a barreira marroquina também não o foi, e um país emocionou-se com o pranto do seu novo ícone.

O Euro 2004 abriu caminho à era que, se calhar, ontem terminou. Durante duas décadas, falar de seleção foi falar de Ronaldo, talvez exageradamente, talvez porque é difícil escapar a quem faz 196 jogos e 118 golos com a mesma camisola.

As lágrimas do Catar eram lágrimas de adeus, o choro de quem sabe que o sonho de tocar no troféu que simboliza o topo do mundo terminou. As lágrimas de Lisboa foram lágrimas de frustração adolescente, choro misturado com raiva juvenil, impulsionado pelo entusiasmo de quem, naquele verão, demonstrara ter tudo pela frente. Nesta união lacrimejante, houve mais gotículas que marcaram a era de Cristiano.

Saint-Denis, 10 de julho de 2016. A noite dos bichos estranhos a sobrevoarem o relvado até tinha arrancado com a comoção pela lesão de Ronaldo, no maldito lance com Payet. Mas, ao minuto 109, Éder fez o remate dos remates do futebol português, levando o protagonista desta história à mesma reação que foi forçada por Charisteas em 2004 ou por En-Nesyri em 2022.

Só que as lágrimas não sabem todas ao mesmo, não têm todas o mesmo significado no dicionário das emoções. As lágrimas de Cristiano em França foram de felicidade, de glória, da “noite mais feliz” da sua carreira, como o próprio reconheceu naquele famoso discurso no balneário.

O futuro de Ronaldo, jogador sem clube, é uma incógnita, tal como é o da seleção — desde logo, importa saber se Fernando Santos continuará ou não.

As lágrimas de Cristiano no Catar são o cair do pano emocional na história do melhor jogador português de sempre nos Mundiais, o fim do sonho que começou a ser perseguido quando todos nos emocionámos com o choro do Ronaldo adolescente em 2004. Mas sempre teremos Paris, sempre teremos as doces lágrimas de 2016.

Que as decisões das próximas semanas sejam feitas pelo melhor do futebol nacional, que, a haver separações, que sejam com dignidade e sem os episódios que houve, por exemplo, depois do Mundial 2010. O respeito pelas emoções vertidas nos últimos 20 anos assim o exige.

Histórias do dia

Jogos do dia

Infelizmente, hoje não há partidas do Mundial. A competição faz uma pausa de dois dias entre os ‘quartos’ e as meias finais. Terça-feira, Argentina e Croácia discutirão a primeira vaga na partida decisiva. Quarta, é a vez de França, que ontem bateu Inglaterra num dos melhores duelos da competição, e Marrocos medirem forças. Consulte aqui todos os resultados e calendário do que falta disputar.

A foto

A tentativa de limpar as lágrimas que não paravam de escorrer a caminho dos balneários. Uma saída de campo que soa a saída de cena dos Mundiais. Cristiano Ronaldo, o primeiro futebolista homem a marcar em cinco campeonatos do mundo, abandona o grande palco global.NELSON ALMEIDA / AFPs
NELSON ALMEIDA/Getty

Hoje e amanhã não há jogos, mas por cá continuaremos a analisar e informar sobre as consequências que saírem do Catar para o futuro da seleção nacional. E, claro, a falar sobre os protagonistas ainda em prova, de Mbappé a Modric, de Messi a Amrabat. Continue a seguir-nos no site da Tribuna.

Muito obrigado por estar aí desse lado.

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