Tribuna Eventos - Mundial 2022
Um dos mais fascinantes aspetos em torno desta coisa de ter paixão pelo futebol é um certo sentido de inevitabilidade. É como se o amor pela bola não fosse bem uma opção, uma escolha, mas sim algo que, simplesmente, surge, indiferente a vontades. Converte-se em parte de nós, num adquirido da existência, como o são o sol e a lua, a noite e o dia.
Às vezes estamos mais felizes com o futebol, outras mais tristes, mas sabemos que, na verdade, virar-lhe as costas não é uma opção, porque não estamos no campo do simples e puro querer.
Esta inevitabilidade ajuda a que o futebol se funda com a própria vida, ao ponto de ela ser, em parte, contada por ele. Podemos dividir a vida em temporadas, recordar onde estávamos naquele golo, pensar o que fizemos depois de ver aquele encontro, porque na verdade a bola não é uma pausa no quotidiano, mas sim uma continuidade e uma extensão dele.
Neste caminho — às vezes de mãos dadas, noutras de irritação momentânea, mas sempre com a companhia mútua— há personagens que ganham relevância e constância tal que quase soam a amigos que a bola nos dá, pedaços que saem da relva para parecer que se sentam ao nosso lado nas bancadas da vida. Ontem, dois desses exemplares garantiram a continuidade no último Mundial das suas carreiras.
Modric, o médio que joga com o conhecimento de quem já viu tudo e com o entusiasmo de quem tem tudo por ver, liderou a Croácia em nova epopeia dos balcânicos, eliminando o Brasil; Messi, essa espécie de milagre que desceu de uma outra dimensão para insinuar como é que se joga no paraíso, marcou e assistiu no sofrido triunfo da Argentina contra os Países Baixos.
O maravilhoso talento de Luka e Leo ganha fascinação redobrada porque eles são do tipo de futebolistas que ajuda a explicar quase duas décadas de vida. Evidenciam o quão pegado o jogo está à existência, entrelaçando conexões que o tornam mais uma parte de nós.
Pegando no meu caso: lembrar-me do Mundial sub-20 de 2005, primeira conquista de Messi em cores celestes, e recordar a antiga televisão dos meus pais, gorda e pesada; pensar no meu 7.º ano, o último em que uma papelaria esteve aberta no fundo da rua do liceu, e chegar à conclusão que aí comprei um guia do Euro 2008 que apontava um jovem do Dinamo Zagreb, de nome Modric, como revelação desse torneio; saber que o meu pai foi operado no dia em que Leo deitou por terra Boateng; olhar para fotografias de Luka com a camisola do Tottenham e lembrar-me de tardes de Premier League na companhia do meu avô, no Alentejo.
Saber que fomos do HI5 para o Facebook, do Twitter para o Instagram, da inocência com a internet à consciência dos poderes e perigos das redes sociais e lá estava Messi, tão canhoto e argentino, tratando de levar um objeto para dentro de um alvo, qual hombre perro descrito por Hernán Casciari; ver que fui do 3.º ciclo para o secundário, da licenciatura para o mestrado, de Lisboa para Bologna, de Madrid de volta a Lisboa, e o cabelo esvoaçante de Modric continuou graciosamente a embelezar as receções orientadas, os passes de trivela, a inteligência no campo.
Se o futebol não é uma escolha, é, em parte, por gente como Modric e Messi, que entram pelas nossas vidas para se misturarem com elas, para lhes darem um toque de entusiasmante continuidade. Um dia, talvez não dentro de muito tempo, eles deixarão de andar pelos relvados.
Também aí serão um pedaço da existência, porque também ela, fatalmente, nasce e morre inevitável. Até lá, o futebol continuará a dar à vida a presença de Leo e Luka, dois companheiros desta viagem no meio de nós que se cruzarão, entre eles e connosco, na terça-feira, às 19h00, numa partida que dará acesso à mais importante final da bola gigante onde vivemos que, tal como as que pulam na sua superfície, nunca deixa de girar.
Histórias do dia
Jogos do dia
Marrocos - Portugal (15h00, SIC)
Inglaterra - França (19h00, Sport TV1)
A foto
Hoje Portugal tentará bater os duros marroquinos para estar, pela terceira vez na história, nas meias finais de um Mundial. As dúvidas sobre o onze de Fernando Santos manter-se-ão até perto do apito inicial, mas há algum tempo que o país não olhava para uma grande competição com esta esperança. Nós cá estaremos para acompanhar tudo, no site da Tribuna, e com o nosso enviado especial ao Catar, Hugo Tavares da Silva.
Muito obrigado por estar aí desse lado, fazendo parte desta vida mundialista.
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