De nada adianta espernear: Portugal é o vilão do conto de fadas de Marrocos. Quando, a meio da década de 90, regressámos às grandes competições, éramos a equipa preferida dos neutros, o Brasil da Europa, a melhor seleção do futebol sem balizas, os simpáticos e talentosos intrusos, espécie de “lebres” da maratona ou banda de primeira parte que arrumava à pressa o equipamento para dar lugar aos veteranos, geralmente alemães.
O auge desse sentimento universal de simpatia que despertávamos ocorreu no Euro 2000, mas depois da mão de Abel Xavier, dos protestos estilo distritais dos jogadores portugueses, dos castigos pesados e do naufrágio no Mundial seguinte acabou-se o idílio. Nunca mais fomos os queridinhos do público, a escolha das bancadas, aquele amigo do herói que dizia as piadas e morria a meio do filme de ação. Pelo contrário, passámos a ser odiados, sendo esse ódio a consequência previsível da nossa maioridade futebolística.
Quando, por duas vezes, eliminámos Inglaterra nos penáltis, quando combatemos, de igual para igual, os holandeses e os seus truques sujos na Batalha de Nuremberga, quando avançámos até Paris com o nosso blindado de empates e conquistámos a taça na cara dos franceses, descobrimos que o mundo gostava mais de nós quando regressávamos a casa de coração partido com as lágrimas de Eusébio ou deixando para trás o rasto inócuo da genialidade de Chalana.
Durante algum tempo acreditei que esta mudança de corrente teria que ver com o futebol praticado, que se voltássemos ao jogo criativo, envolvente e de ataque da seleção de 2000 reconquistaríamos o afeto perdido. Mas não tem. Nós gostamos de histórias. E a história que os neutros querem ouvir amanhã é a da passagem inédita de uma equipa africana às meias-finais. Marrocos joga o tipo de futebol que, se no banco dos magrebinos estivesse sentado um José Mourinho, seria condenado ao degredo ou acusado de ser pré-histórico.
É uma equipa de meio-fundo, de 1.500 metros, corre muito para apagar fogos na defesa e corre depressa para os atear no ataque. É futebol de cimitarra nos dentes, feio (feio, mas bem jogado nessa fealdade) e com laterais sexy, dos que gostam e sabem atacar e resgatam qualquer equipa da fealdade ambígua do bloco baixo, coeso e incansável. Com aqueles laterais, Hakimi e Mazraoui, a equipa voa, dança, seduz, por vezes fere mortalmente, e depois fecha-se de novo na concha, trancas à porta, persianas para baixo, luzes apagadas. Luzes apagadas para o adversário porque os marroquinos jogam bem às escuras.
E nem este futebol verdadeiramente cínico, este zeroazerismo (ainda assim mais vivo e palpitante do que o milpassismo espanhol), arrefece o coração dos que veem nesta a grande história do Mundial, que se agarram à única grande surpresa da competição (fora alguns resultados bizarros que pouco ou nada alteraram a grande ordem das coisas) e que desejam ardentemente que os marroquinos destruam com pedras e paus a beleza de que a nossa seleção já mostrou ser capaz. Como um bom vilão de cinema, um Hannibal Lecter, cabe-nos desmanchar-lhes os prazeres com arte e crueldade.