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Crónica de Jogo

França - Marrocos. A gestão do treinador Griezmann derruba a muralha que diz adeus atacando

Liderada por um antigo atacante que é hoje defesa que faz cortes na pequena área, médio organizador e general que ordena os companheiros, a seleção campeã do mundo bateu (2-0) Marrocos e está na segunda final consecutiva. Theo e Kolo Muani foram os primeiros jogadores adversários capazes de marcar golos a Marrocos, que passou boa parte do tempo a atacar mas não mostrou recursos contra a solidez gaulesa

Pedro Barata

Alex Livesey - Danehouse/Getty

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Quando as Bolas de Ouro e restantes prémios individuais iam todos para a Madeira ou para Rosario, Antoine Griezmann disse que se sentava na mesa de Messi e Cristiano Ronaldo. A ousada afirmação, dita em 2018, correspondia à imagem de ambição do então atacante, que a certa altura parecia um dos mais sólidos concorrentes na longa lista de aspirantes à sucessão do duopólio que marcou uma era no futebol.

Griezmann era o craque do Atlético de Madrid, então candidato à Champions; era a referência de França, que com uma luminosa geração jovem ameaçava marcar uma era no futebol de seleções; começava a ser construída uma marca à sua volta, com incursões no mundo da moda, dos videojogos e até um documentário, de inspiração norte-americana, para revelar se o canhoto iria continuar em Madrid ou se transferiria para o Barcelona (spoiler alert: ficou no Atlético, mas foi para Camp Nou no ano seguinte, para dois anos depois regressar a Madrid, onde chegou a ser um jogador em part time, com tempo de jogo limitado a 30 minutos por encontro).

Em 2022, Grizou já não é esse aspirante a grande vedeta global, já não compete no campeonato do star system ao mesmo tempo que tenta marcar golos. A atribulada passagem por Barcelona, o momento difícil do Atlético de Simeone ou o surgimento de Mbappé em França colocam-no numa posição diferente.

Mas, em 2022, Antoine está a fazer no Catar um torneio único, jogando um campeonato onde só ele se insere. É o torneio do jogador-treinador, do craque-técnico adjunto, do médio-ofensivo que corta bolas na pequena área, do médio que faz assistências, do futebolista que dá indicações por todo o campo e que até conferencia com Didier Deschamps, o treinador de facto, sobre as melhores opções táticas a tomar.

Liderado por este canhoto de pés de artista e mente de jogador de xadrez, a França bateu (2-0) Marrocos e está na final do Mundial pela segunda vez seguida, repetindo os feitos de Itália (1934-38), Brasil (1958-62 e 1994-98) e Argentina (1986-90). Num embate em que os gauleses tiveram de mostrar toda a sua experiência na gestão destas situações limite, o saber estar de Antoine nestes palcos foi a lucidez que aproximou les bleus da terceira estrela.

Catherine Ivill/Getty

Se Marrocos tinha sido, até aqui, a sólida muralha que ninguém quebrara, nesta meia-final o golo de Theo aos 5' obrigou os homens de Regragui, o construtor da primeira seleção africana e árabe a chegar a esta fase, a aplicarem um novo plano. Os marroquinos tiveram mais bola, fizeram quase tantos remates (13) como nas eliminatórias frente a Portugal e Espanha somadas (15), mas, quando era preciso outra dose de arte, os “leões do Atlas” foram curtos perante a montanha de experiência e hábito competitivo que estava do outro lado.

O anúncio dos onzes iniciais trouxe logo novidades. Ao contrário do que fez em todo o Mundial, Marrocos apresentou três centrais, juntando Saiss, Aguerd e El Yamiq. No entanto, as marcas de embates anteriores, que já deixavam em dúvida a condição física de alguns marroquinos, levaram a que Aguerd, após o aquecimento, não conseguisse estar no jogo. Entrou Dari, mantendo-se a ideia dos três homens no eixo da defesa.

A equipa do Norte de África chegou até aqui com base numa força defensiva que fez com que, em cinco partidas, nenhum adversário batesse Bono, que só sofreu um golo quando um mau corte de Aguerd contra o Canadá o deixou sem resposta. Mas logo aos 5’ a tal concentração de protetores da área revelar-se-ia frágil.

Varane tentou colocar um passe vertical para Griezmann, mas a tentativa de antecipação de El Yamiq acabou numa fatal escorregadela do número 18, abertura de porta para o todo-o-terreno com antepassados em Paços de Ferreira. Antoine, já na área, serviu Mbappé, que esbarrou na famosa barreira defensiva marroquina. O ressalto foi para Theo, que se tornou no primeiro adversário a superar Bono no Catar 2022.

Os três centrais de Marrocos cortaram à equipa a capacidade de apertar com o meio-campo que apresenta com o seu trio de açambarcadores junto da linha divisória. Para piorar o cenário, as tais marcas dos épicos confrontos contra Espanha e Portugal condicionavam Saiss, cujas limitações foram evidentes aos 17', quando (não) correu atrás de Giroud. O tiro do avançado esbarrou no poste.

A inferioridade de Saiss levou-o a ser substituído. Entrou o médio Selim Amallah e outro desafio começou para Marrocos.

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Matthias Hangst

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Richard Heathcote

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Dan Mullan

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Matthias Hangst

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ANTONIN THUILLIER

Os norte-africanos deram passos à frente no terreno, também convidados por uma França que sabe que Mbappé a 70 metros da baliza contrária é uma promessa de perigo. Ounahi, o enérgico médio que surpreendeu Luis Enrique, foi o primeiro a ameaçar Lloris com um bom remate de longe.

Sem Rabiot, Fofana fez companhia a Tchouameni no meio-campo francês, uma junção de betão à frente da defesa. Mas o médio do Real Madrid junta a força física à facilidade em queimar linhas em condução e foi depois de progredir muito com a bola que Mbappé e Giroud roçaram o 2-0.

Com o passar do minutos no primeiro tempo, Marrocos ia-se entusiasmando, empurrada pela força do numeroso público que estava do seu lado. O fator emocional, tão presente para a seleção sensação em todo o torneio, estava ainda mais vivo num duelo contra a antiga potência colonizadora. Fazendo uso dos feitiços que saem das botas de Zyech e Boufal, os menos favoritos acabaram a etapa inicial a roçar o golo.

Aos 44', Jawad El Yamiq ensaiou o remate sonhado por todos os realizadores de filmes sobre futebol. O central elevou-se, de costas para a baliza, num remate acrobático que, antes de ser executado na realidade, deve ter sido feito milhares de vezes em sonhos, apoiado pela potente arma chamada imaginação. A estética finalização só parou no poste direito dos campeões em título.

O remate de Jawad El Yamiq ao poste

O remate de Jawad El Yamiq ao poste

Fantasista/Getty

A segunda parte trouxe uma continuidade do guião. Cada arrancada de Mbappé era travada com ímpeto pelos marroquinos, que beneficiavam da permissão do árbitro mexicano César Ramos.

Aos 55', Konaté evitou que En-Nesyri, o carrasco de Portugal, marcasse. Como Mbappé não ajudava a defender na esquerda, os marroquinos iam ameaçando.

Mas, aos 57' e aos 62', duas ações de perigo dos homens de vermelho foram travadas, na pequena área, por um aparentemente frágil número 7. Pelo mesmo homem que logo a seguir estava a dar indicações a toda a equipa e que aos 71' colocou a bola na cabeça de Thuram, na que poderia ter sido a sua quarta assistência do Mundial. E que antes tinha tentado entrar em drible na área rival.

Se a França aguentou o ímpeto de Marrocos, em boa parte se deveu ao apoio dado por Griezmann aos centrais; se a França, nalguns momentos, geriu o ritmo da partida, escondendo um pouco a bola, em boa parte se deveu à inteligência e qualidade de Griezmann no meio-campo.

Se a França é um conjunto altamente competitivo, que não treme quando os outros estão nos limites, em boa parte se deve a Griezmann, o único treinador-jogador do Catar 2022.

Aos 80', a melhor aparição de Mbappé na partida levou a que um remate do atacante ressaltasse para Kolo Mouani, que fez o 2-0. Nos descontos, Marrocos ainda ameaçou o 2-1, mas o jogo era um conto terminado.

Os festejos franceses tiveram um toque contido, quase rotineiro, longe da euforia pungente da Argentina. É como se, de certa maneira, para os campeões do mundo isto não fosse um feito, mas sim o burocrático cumprimento do dever, da normalidade, da constatação da superioridade de um sistema de produção em série de talento, capaz de sobreviver às lesões de Kanté, Pogba ou Benzema — só para mencionar alguns — e continuar a parecer um plantel virtualmente formado num qualquer simulador.

É a serenidade pensante do general Griezmann. Domingo, a previsibilidade francesa enfrenta-se à paixão argentina. Mbappé contra Messi, dois funcionários pagos a peso de ouro pelo fundo soberano do Catar na final do torneio feito pelo Catar para projetar a imagem do Catar.