No final, também vai ser uma questão de orgulho. Quando entrar em campo na quarta-feira para uma das mais improváveis meias-finais de Mundial que há memória, os jogadores marroquinos jogarão pelos pais, pelos avós, pelos bisavós. Jogarão por uma nação que do início do século 20 até 1956 foi um protetorado do país que irá defrontar, tomada pela força de um país europeu, apequenada na sua independência.
Este Marrocos que bateu a Bélgica, que travou Espanha e deixou Portugal em lágrimas vai agora atrás do seu colonizador, a França. E a seleção de 2022 é fruto da sua história.
A diáspora marroquina é vasta e numerosa, dados de 2020 garantem que há mais de 5 milhões de seres humanos originários daquele pedaço de terra no norte de África espalhados pelo mundo, mais de um milhão deles precisamente em França. Foi lá que nasceu Walid Regragui, o intenso selecionador marroquino que deu uma aura nova a este grupo de jogadores vindos de toda a parte. Bono, o guarda-redes estrela que tudo agarra nasceu, por exemplo, no Canadá, Walid Cheddira em Itália: são 14 os jogadores que não nasceram em Marrocos e mais uns quantos deixaram o país novos, rumo à Europa onde quase tudo aprenderam sobre futebol.
E é por isso que Philipp Lahm sublinha que Marrocos é, em termos de cultura futebolística, uma seleção europeia. O tempo dos jogadores africanos talentosos, fantasistas mas perdulários acabou. Marrocos é uma seleção fria, taticamente bem trabalhada, com Regragui a aproveitar o melhor que os seus jogadores trouxeram dos Países Baixos, Bélgica, França, Espanha, onde nasceram filhos e até já netos de gente que foi para a Europa à procura de outra vida.
Walid Regragui, o homem que tudo agregou na equipa de Marrocos
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“Vejo muitos jornalistas europeus que criticam o nosso jogo. E eu penso que é o reflexo de muitas equipas africanas já jogarem como equipas europeias. Eu sei que antes gostavam muito de dizer que éramos equipas simpáticas, dançantes, que jogámos bem e com prazer. E no final íamos para casa. Isso acabou. As coisas mudaram, estamos aqui para ganhar. Ganhar por África, pelos países que estão a desenvolver o seu futebol. Não há só uma forma de ganhar”, sublinhou o selecionador, nascido nos arredores de Paris há 47 anos e que se fez jogador no país que na quarta-feira quererá derrotar, para tornar ainda mais cinderelesca a já por si só histórica campanha de Marrocos no Mundial do Catar: na primeira vez que o Mundial viajou para o Médio Oriente, uma equipa africana ou árabe chegou às meias-finais também de forma inédita.
Mas é injusto dizer que esta seleção, que ainda só sofreu um golo neste Mundial (e um auto-golo) e que deixou a baliza a zeros frente a Croácia, Bélgica, Espanha e Portugal, é fruto apenas de talentos forjados lá fora, como Hakim Ziyech e Noussair Mazraoui, com educação futebolística dos Países Baixos, ou Achraf Hakimi, nascido em Madrid, trabalhado na cantera do Real. Por detrás daquele bloco bem coeso atrás e cheio de capacidade de lançar contra-ataques pela certa, venenosos, está também o sonho do Rei Mohammed VI e de uma academia nascida e criada em Marrocos e cuja influência já se nota nesta geração de 2022.
A Academia de Futebol Mohammed VI é uma escola erguida em 2010 perto de Rabat, com financiamento privado e do próprio rei de Marrocos, construída para enxotar uma década de resultados desapontantes das seleções marroquinas nas competições internacionais. Com condições equiparadas às melhores academias da Europa, onde os jovens jogadores podem estudar, viver e desenvolver o seu jeito para o futebol, dali saíram Youssef En-Nesyri, o homem-pássaro que derrotou Portugal nas alturas, o centralão Nayef Aguerd ou aquele que é, provavelmente, a grande revelação deste Mundial, o incansável miúdo Azzedine Ounahi, médio que não deverá ficar muito mais tempo no Angers francês. O projeto real só poderá ser considerado um sucesso.
E aconteça o que acontecer, venha o que vier, surjam as críticas que surgirem, o Mundial de Marrocos é um tremendo triunfo. Um desfazedor de preconceitos, um tapa na cara de quem tudo parece saber. Frente a França, neste duelo emotivo, escaldante e que será muito mais do que um simples jogo de futebol, não se espera um Marrocos diferente do que temos visto: a bola andará muito nos pés dos jogadores franceses, os norte-africanos defenderão com coragem e método, à espera de um erro do adversário para atacar. Porque a posse de bola, diz Regragui, é coisa de privilégio, de quem se pode dar ao luxo de a ter.
Nos pés de Mbappé estará também a chave para tombar a muralha marroquina
MANAN VATSYAYANA/Getty
“Ter 70% de posse de bola para depois rematar duas vezes à baliza? Estamos aqui para ganhar, não para ter bola. O City tem sempre 70% de posse, mas já viram bem que jogadores tem? Com De Bruyne e Bernardo Silva vais ter sempre a bola”, disse o treinador, apenas desde agosto no cargo, chamado para unir uma equipa de costas voltadas na vigência de Vahid Halilhodzic, o veterano treinador bósnio que levou ao exílio de Ziyech. Mal chegou ao cargo, Regragui pegou no telemóvel e fê-lo reconsiderar. Hoje é uma das figuras deste Mundial, onde só o quase não chega. Na conferência de imprensa de antevisão ao encontro, Regragui não foi de modas: “Chamem-me louco, mas quero ganhar o Mundial”.
Para tal será necessário primeiro que aquelas duas linhas muito juntas aguentem Kylian Mbappé, Antoine Griezmann ou Ousmane Dembélé. A França, campeã do mundo em título, quer repetir a final de 2018 e tem parecido ser a equipa mais adulta do torneio. Mesmo quando nem sequer é a melhor equipa em campo, como quase sempre aconteceu nos quartos de final com a Inglaterra. Talvez esteja aí o segredo.
Apesar dos golos que a equipa vai teimando em sofrer, Didier Deschamps resolveu com mestria o problema que tinha a meio-campo, baixando Griezmann para as costas do trio atacante - e o jogador do At. Madrid tem sido um dos melhores do Mundial. Olivier Giroud mantém a aura de avançado subvalorizado e Mbappé pode passar um jogo meio escondido para logo de seguida o resolver, como se viu contra a Polónia.
Kylian é o melhor marcador deste Mundial, com cinco golos, tem nove no total dos dois Mundiais em que participou e com 23 anos pode muito bem ainda igualar Just Fontaine, o melhor marcador francês na prova, com 13 golos - Fontaine, em modo sniper no Mundial de 1958, na Suécia, nasceu, curiosamente, em Marraquexe, no então território marroquino de administração francesa.
No seu antigo colonizador, Marrocos terá provavelmente o seu maior desafio, porque a concentração de talento é imensa e França sabe balançar o imediatismo das suas estrelas com uma organização assinalável. Há recursos na área, na meia-distância. Mbappé tem tudo. Vai ser um jogo de tensão máxima e não só dentro de campo.