Pablo Sarabia parte para a bola com cara fechada, talvez com o peso da responsabilidade de ter entrado aos 118', sendo um regular executante de penáltis, talvez somente pela importância do momento. À sua frente está Yassine Bono, guarda-redes com uma linguagem corporal oposta à do espanhol. O marroquino sorri, balança o corpo, toca na barra, como se quisesse provar a grandeza do corpo que está entre Sarabia e as redes.
O espanhol corre para a bola, Bono faz uma simulação de pernas mesmo antes do remate e o tiro sai ao poste. Pouco depois é a vez de Carlos Soler bater para la roja. Bono parece falar, talvez na direção do jogador do PSG, talvez para si próprio, quiçá conversando com a bola. As simulações em formato de pequena dança repetem-se e Bono defende.
Entretanto, Sabiri e Ziyech tinham marcado para Marrocos, mas Benoun permitira a parada de Unai Simón. Espanha poderia voltar à discussão. É a vez de Busquets. O capitão olha para o árbitro, mira o céu, mas evita cruzar olhares com o guardião marroquino. Bono já está a sorrir antes da execução do penálti. O desfecho é o mesmo: simulação de pernas e defesa do homem do Sevilla, que prolonga a face de felicidade que já o acompanhava.
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Match point para Marrocos. O momento é vivido com igual tensão dos dois lados do Mediterrâneo. Achraf Hakimi pega na bola.
Poucos jogadores exemplificariam tão bem as particularidades deste duelo como o lateral do PSG. Nascido em Madrid, poderia ter optado por representar Espanha, mas tomou outra opção. A escolha que o fazia estar ali, diante de uma bola, prestes a realizar o remate mais importante da história do país.
Nunca Marrocos superara os oitavos de final do Mundial. O que fez o madrilenho contra Espanha? Picou a bola, num Panenka para a eternidade do desporto marroquino, um gesto de classe que terá significado tanto para tanta gente que sente as cores dos ‘leões do Atlas’ em Casablanca e Madrid, Rabat e Barcelona.
Depois do nulo nos 90 minutos e no prolongamento, as proezas de Bono e Hakimi colocaram Marrocos como única seleção não europeia ou sul-africana nos quartos de final deste Mundial. Para Espanha, é a terceira eliminação seguida nos penáltis, depois de cair assim em 2018 e 2020.
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No estádio Education City, Marrocos montou um plano de jogo cheio de armadilhas e esparrelas, truques de guerrilha para enganar um adversário potencialmente superior. Uma das principais receitas residia na agressividade colocada nos duelos e divididas, outra numa defesa compacta e coesa que confirmou as credenciais da fase de grupos, quando só sofreu um golo. Resultado? A equipa de Luis Enrique só fez um remate à baliza rival em mais de 120 minutos.
Outra componente fundamental da estratégia de Hoalid Regraguiu — um dos muitos marroquinos com ligações a Espanha, dado que jogou no Racing Santander — passou por isolar Busquets. Nos restantes duelos em que la roja dominou, o capitão somou 102 toques na bola contra a Costa Rica e 79 contra o Japão. Contra Marrocos, já mais de 100 minutos tinham sido disputados e Busi só tinha 64 toques na bola, tendo uma influência dentro do meio-campo adversário bem reduzida.
Pela primeira vez na história, Espanha só fez um remate numa primeira parte de um jogo de Mundial. E esse disparo, autoria de Asensio, nem foi à baliza. É o retrato estatístico de um primeiro tempo de muita posse (69%), mas sem capacidade de desequilibrar. As situações mais perigosas deram-se na outra baliza, com Mazraoui e Aguerd a ameaçarem Unai Simón.
Boufal, extremo irregular mas de talento mágico, foi o principal destaque individual do primeiro tempo. Num lance dançou duas vezes sobre a bola, sem a tocar mas parecendo murmurar-lhe um feitiço, num truque que desorientou Llorente.
Sofiane Boufal a dançar com Llorente, desorientando o espanhol
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No começo da segunda parte, aos 54', Dani Olmo, após um livre, fez o único remate espanhol à baliza de Bono. Luis Enrique passou boa parte da etapa inicial a gesticular, com expressões de algum descontentamento. Aos 63', o asturiano fez avançar o plano alternativo: saíram Gavi, o mais novo a participar num encontro a eliminar num Mundial desde Pelé em 1958, e Asensio para entrarem Soler e Morata, o único 9 de vocação desta lista.
Nas bancadas os adeptos marroquinos iam demonstrando serem uns dos vencedores no Mundial dos cânticos. Dentro de campo, a seleção norte-africana iam recuando cada vez mais, terminando os 120 minutos com uma posse de bola média de 23%.
A entrada de Nico Williams, aos 75', foi o único fator de agitação do futebol espanhol. O homem do Athletic pega na bola, encara, dribla, cria confusão. Logo depois de entrar fez um cruzamento para Morata que Aguerd evitou que se transformasse em finalização, conseguindo a seguir servir o avançado, que rematou sem pontaria. O esperado prolongamento chegou depois de, aos 95', Bono defender com classe um cruzamento de Dani Olmo que ninguém desviou.
Marrocos condicionou quase sempre Busquets
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Os 30 minutos extra foram o relato do domínio da formação europeia. Tocar, tocar, tocar, mas sem perigo. Aos 104', Walid Cheddira, que ainda na época passada alinhava na Série C de Itália, teve nos pés a hipótese de ser herói eterno de Marrocos, mas Unai Simón defendeu com os pés com os quais tanto gosta de iniciar o jogo ofensivo.
Quando já se adivinhavam os penáltis, Luis Enrique fez estrear Pablo Sarabia no Mundial. O canhoto teve nos pés a possibilidade do triunfo, mas a sua excelente finalização aos 123' foi ao poste. Talvez estivesse ali um dos momentos da noite: na vez seguinte em que Sarabia pegou na bola, foi para atirar ao poste o primeiro dos três penáltis que Espanha falou.
A seleção de Luis Enrique, apesar de todos os seus automatismos, rotinas e dinâmicas que a fazem parecer uma equipa de clube, cai com uma sensação semelhante à do Mundial 2018. Muito domínio, pouco desequilíbrio. Parte das explicações estarão, provavelmente, na escassez de talento ofensivo verdadeiramente de topo nesta equipa. Quem pouco se importa com isso é Marrocos. Seguem-se os quartos de final, limite máximo que uma seleção africana já alcançou na história da prova.