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Mundial 2022

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Nasceu em Espanha, mas não era o lugar certo para Hakimi, a estrela de Marrocos que chegou a ser castigada só por ter nome marroquino

A vida e o futebol fizeram-lhe algumas rasteiras pelo caminho, mas até hoje não se deixou derrubar por nenhuma. Talvez seja por isso que Achraf Hakimi está hoje, com Marrocos, nos ‘oitavos’ do Mundial, a fazer história pelo país que escolheu, ignorando a lesão que já tinha quando chegou ao Catar

Rita Meireles

Michael Regan - FIFA

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Foi uma das imagens que marcou a fase de grupos do Mundial 2022: Achraf Hakimi a abraçar a mãe depois do jogo em que Marrocos venceu a Bélgica, por 2-0. A imagem, por si só, já apela à emoção de quem vê, mas quando se junta a história da família à equação ganha todo um outro significado.

“A minha mãe limpava casas e o meu pai era um vendedor ambulante. Viemos de uma família modesta que lutava para ganhar a vida. Hoje luto todos os dias por eles. Eles sacrificaram-se por mim, privaram os meus irmãos de muitas coisas para que eu tivesse êxito”, contou Hakimi, jogador do Paris Saint-Germain, ao site da Bundesliga.

O jogador é filho de imigrantes marroquinos em Espanha. Sem grandes posses a nível financeiro, para a família foi uma luta conseguir levá-lo até à elite do futebol mundial. Hakimi acabou por recompensar todo esse esforço e sacrifício e realizar aquele que era realmente o seu sonho: melhorar a vida dos pais. O momento entre mãe e filho no estádio foi exatamente sobre isso.

Quando a seleção de Marrocos surpreendeu o mundo ao vencer a temida equipa belga - de nomes como Kevin De Bruyne, Romelu Lukaku e Eden Hazard -, Hakimi correu para junto da sua mãe, que estava embrulhada na bandeira marroquina. Ela deu-lhe um beijo na bochecha, ele beijou-lhe a testa e deu-lhe a camisola do jogo, num gesto de agradecimento mútuo por tudo aquilo que conquistaram um pelo outro.

A relação com os pais foi determinante na sua carreira, não só porque está na base de tudo o que construiu, mas também porque foi isso que o levou a tomar a decisão de jogar por Marrocos e não pela Espanha. Apesar de ter nascido no país europeu, Hakimi sempre se identificou mais com a terra natal da mãe e do pai.

“Senti que [Espanha] não era o lugar certo para mim, não me sentia em casa. Não era nada em particular, mas não era como eu vivia em casa, que é a cultura árabe, sendo marroquino”, disse ao diário “Marca”.

Marrocos foi a seleção que levou ao Catar mais jogadores que nasceram em outros países. É uma equipa renovada, depois da saída do treinador Vahid Halilhodzic e a chegada de Walid Regragui, também ele com dupla nacionalidade francesa e marroquina. Além disso, um grupo que leva ao Mundial nomes que tinham deixado de integrar a equipa por desentendimentos com o ex-treinador, como Hakim Ziyech. Mas mesmo o regresso de um dos principais nomes da equipa não retira o protagonismo a Hakimi, de 24 anos.

Em 2017, tornou-se o primeiro marroquino a jogar pelo Real Madrid. Seguiu-se um empréstimo ao Borussia Dortmund, onde as boas exibições carimbaram a transferência para o Inter. Até aqui venceu a liga espanhola, italiana, a Liga dos Campeões e a Supertaça alemã. No ano passado recusou uma proposta do Chelsea para se juntar ao PSG, por 60 milhões de euros. Um percurso que conquista após várias dificuldades, que não se ficaram apenas pela infância.

Jean Catuffe

Há seis anos, a FIFA tomou uma decisão que ainda hoje não é totalmente compreensível.

“Ele não o esperava e não compreendeu o que tinha acontecido”, recordou Nabil, irmão de Achraf Hakimi, ao “The Guardian”. “Eles tinham um jogo perto de Bilbao e, quando lá chegaram, disseram-lhe que ele não podia jogar”.

A decisão chegou após uma investigação sobre a possibilidade de o Real Madrid ter assinado ilegalmente jogadores menores vindos do estrangeiro. Em setembro de 2016, Hakimi soube que não poderia jogar.

“Penso que a FIFA estava a verificar os nomes mais raros de imigrantes, mais do que onde o rapaz nasceu, que foi o que aconteceu com ele”, disse Rabie Takassa, que trabalha como olheiro em Espanha para a Federação Marroquina de Futebol, ao jornal britânico. “Eles viram um nome marroquino e ele foi castigado sem o merecer. O Real Madrid e a sua família deram todos os documentos necessários, mostrando que ele nasceu num hospital em Madrid, que estudou aqui, que passou toda a sua vida a crescer aqui. Foi um período complicado para ele porque não sabia quando é que a FIFA lhe daria luz verde para voltar a jogar”.

Hakimi regressou algumas semanas mais tarde e fez a sua estreia pela equipa sénior de Marrocos no mês seguinte, numa vitória por 4-0 contra o Canadá.

Em 2019, o azar voltou prestar-lhe uma visita. Estava na Alemanha e fraturou o quinto metatarso do seu pé direito num jogo contra o Wolfsburg. Foi impossível evitar a cirurgia. “Assusta-me pensar como voltarei depois da lesão”, desabafou o jogador na altura. Hakimi acabou por perder o que restava da temporada e teve que dedicar bastante tempo à sua recuperação, mas no final acabou por voltar ainda melhor do que tinha saído e, na época seguinte, toda a gente ficou a saber o nome de Achraf Hakimi no campeonato alemão.

Foram 45 jogos, nove golos e 10 assistências.

Antes do Mundial, voltou a ficar sem jogar. Desta vez foi apenas um encontroe, ao que tudo indica, por questões políticas. O PSG jogou contra o Maccabi Haifa, de Israel, e o treinador optou por deixar Hakimi no banco alegadamente devido ao jogador nunca ter escondido o seu apoio à Palestina, segundo avançou a “RMC Sport”. Em junho, durante a Supertaça de França que se jogou em Israel, o jogador escreveu no Twitter: “Free Palestine”.

Oliver Hardt - FIFA

As suas boas exibições já não são surpresa para ninguém, mas a boa forma que a seleção de Marrocos tem apresentado no Catar foi uma das grandes surpresas do torneio. A equipa passou a fase de grupos na primeira posição e vai disputar um lugar nos ‘quartos’ contra a Espanha. E os dois mundos de Hakimi voltarão a colidir.

Este será o quarto jogo da seleção no Mundial e em todos eles o marroquino lida com um problema no tornozelo. É mais uma partida que o futebol lhe prega e mais uma prova de que Achraf Hakimi não vira as costas a nenhum desafio, até porque já passou por pior e hoje está onde está. “Olhem para o Hakimi, ele jogou lesionado até ao último minuto. Todos os marroquinos deveriam louvá-lo todos os dias”, disse Regragui, depois de garantir o primeiro lugar do grupo.