Tribuna Eventos - Mundial 2022
A história de Roberto Cejas só poderia ser a de um argentino. Com 29 anos, prometera ir à final do Mundial, em 1986, caso a seleção lá chegasse e os sete amigos que já tinha no México anuíram, disseram-lhe para vir daí mesmo sem bilhetes, ele foi, as entradas arranjaram-se e chegados ao estádio Azteca até forma de ludibriar nativos - ou o coloquial “demos a guita aos mexicanos”, dito pelo próprio - descortinam para se sentarem no primeiro anel, junto ao relvado, em vez do superior onde deveriam estar. Batida a Alemanha Ocidental, o êxtase urgiu-os, tinham de conseguir chegar ao campo.
Convencidos dois polícias a fazerem vista grossa do seu pulo à vedação, Roberto Cejas e comparsas invadiram o campo na companhia de centenas de outros. Ele “cantava, saltava, dava voltas” e pela cabeça ia-lhe a noção de que um dia veria o vídeo dos festejos e conseguiria reconhecer-se ali no meio. De peruca alviceleste, bigode proeminente e polo com riscas coloridas, a sua figura saltaria à vista, mas não pela vestimenta. Às tantas, no meio do alarido e do maralhal que misturava adeptos na festa dos jogadores, Roberto acercou-se de uma das áreas e quando deu por ele tinha por diante o Deus na terra para tantos argentinos.
Era Diego Armando Maradona.
E o anónimo adepto nem pensou. “Agachei-me, levantei-o e assim comecei a levá-lo a trote”. Lá foi carregando em ombros a divindade que levou numa volta olímpica ao estádio, enquanto era fotografado abundantemente por ter o íman de uma crença, celestial e carnal em doses iguais, transcendente nos feitos embora mortal nos defeitos. Maradona provou sê-lo durante a vida e naquele momento. Era um inalcançável ídolo que sorria de alegria no terraço de um homem desconhecido e as câmaras eternizaram esse instante muy argentino, só podia ter que ver com Argentina a história da única pessoa no mundo que sabe quanto pesa Maradona mais o troféu do Mundial - que ele teve nas mãos o tempo todo.
Há 36 anos na Cidade do México, hoje em Doha, a loucura de um coletivo de gente reencontra-se para nova tentativa de equiparar um génio a outro. De 2014 sobrou uma foto icónica de Lionel Messi vidrado na taça em que não tocou e agora os argentinos que se endividam, adiam compras de casa e gerem poupanças a anos de distância a bem de uma ida ao Mundial salivam no seu fanatismo para elevarem outro canhoto ao Olimpo da sua adoração: em 1978 foi Mario Kempes, em 1986 o deus de uma igreja, em 2022 está Messi na fila.
Seja jogado como for, ganhe quem ganhar, será uma tarde de erupção ativa de emoções para todos eles, os que ainda cá estão e os que veem algures lá de cima. Pela frente há a França que atravessa mais um ciclo de supremacia sem enorme brio, mas cheio de talento à disposição, os foguetes que iluminam o campo pertencem cada vez mais às fintas velocistas de Kylian Mbappé mas o gestor do fogo de artifício é Antoine Griezmann, o gaulês que se adaptou às circunstâncias da carência de médios e recuou no campo para mediar todas as jogadas. Não havendo vitória para os argentinos na despedida de Lionel Messi de Mundiais, a conquista assentará sempre bem numa França que então venceria dois torneios consecutivos.
A nostalgia é palpável no ar, já estamos a presenciar algo que jamais voltaremos a ver e a melancolia gerada pelo fim do que ainda nem começou terá a mesma origem do arrependimento que Roberto Cejas sente em relação a um pedido do mais inocente que poderia haver. Hoje louvado pelos netos no “olha o avô a levar o Maradona”, ele admitiu, há um ano, que “o único diálogo” partilhado com Diego foi quando lhe pediu uma chuteira de recordação, pedido rejeitado porque o jogador “ia dá-las à sua mãe”. Mesmo sem saber, Roberto diz que se “enoja” por se ter atrevido sequer a perguntar. É este o grau de veneração que também está em jogo na relação entre os argentinos e o futebol.
Histórias do dia
Jogo do dia
Argentina - França (15h, RTP1)
(e perdoem-nos a redundância desta secção nos últimos dias.)
A foto
O mês recheado de futebol mundialista encafuado no meio do inverno do hemisfério norte acaba hoje e a si devemos mais um obrigado por nos ler e acompanhar. No site da Tribuna continuaremos a ligados ao torneio até ao fim. Que seja uma boa final e, sobretudo, que todos desfrutemos do que aí vem.
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