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Crónica de Jogo

Croácia - Marrocos. O laboratório e o sol aos quadradinhos

O jogo de atribuição do 3.º e 4.º lugares do Mundial, que tanta gente desdenha, teve uma das melhores primeiras partes do torneio. Foi aí que a Croácia construiu o 2-1 que lhe deu o bronze, frente a uma equipa de Marrocos que foi igual a si própria, com o heroísmo, coração e organização que vimos ao longo do último mês. Talvez valha a pena manter este jogo, que pouco vale, a não ser a honra. Mas honra é tudo

Lídia Paralta Gomes

ODD ANDERSEN/Getty

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Longos serões de esgrimir de argumentário sobre a relevância do jogo de 3.º e 4.º do Mundial já foram gastos, discussões provavelmente tão irrelevantes quanto o jogo em si. Ficar em 3.º lugar no Mundial vale tanto quanto uma menção honrosa num concurso de literatura: cai bem, mas só os nossos pais se vão lembrar.

Bem, e daí. Ninguém se lembrará provavelmente que a Alemanha ficou em 3.º lugar do Mundial de 2006 (bateu Portugal nesse jogo), porque os alemães jogavam em casa e o objetivo era levantar a taça. Mas é possível que muita gente se recorde que a Turquia tem um 3.º lugar num Mundial, em 2002, até Portugal tem um bronze, em 1966. Para quem não está habituado a ganhar, uma menção honrosa vale provavelmente aquilo que nunca até aí se havia conseguido.

E é por isso que um Marrocos - Croácia num jogo de 3.º e 4.º lugares de um Mundial nunca seria um duelo chato, um jogo entre dois gigantes amuados por estarem num lugar que não consideram digno do seu estatuto. Um 3.º lugar para Marrocos seria o gravar na pedra de uma caminhada gloriosa neste Mundial 2022, em que se tornaram na primeira equipa africana a chegar a umas meias-finais. E olhando para a forma como os croatas festejaram no final do encontro, uma medalha de bronze depois do 2.º lugar de há quatro anos também não é nada de se deitar fora, principalmente se nos lembrarmos que estamos a falar de uma jovem nação de 4 milhões de habitantes que chega a duas meias-finais seguidas em Mundiais.

É obra.

Pixsell/MB Media

Por tudo isto, a primeira parte deste jogo que nada vale, valendo pelo menos a honra, que não é de se desdenhar, poderá muito bem figurar nas melhores primeiras partes deste Mundial. Aos 10 minutos de jogo, já havia um golo para cada lado. O primeiro saído do laboratório de Dalic, um livre frontal, que se transformou numa jogada de pinball. Lovro Majer enganou meia defesa de Marrocos, não lançando para o coração da área. A bola foi isso sim para a lateral, com Perisic a dar-lhe uma penteadela acrobática, que permitiu a Gvardiol, o miúdo que foi o melhor central deste Mundial, mostrar também o que vale enquanto cabeceador.

Estávamos no minuto 7 e Marrocos encontrava-se na mesma posição que no jogo anterior, com a França: a perder cedo. Os africanos, tremendos na atitude, no coração, mas também na organização do seu futebol, não demoraram a reagir, como também não demoraram frente aos gauleses. Mas aqui o golo apareceu logo, aos 9’, também após um livre. O fajuto alívio de Majer foi de tal maneira terrível que ainda a bola não havia caído aos pés de Dari e já o croata metia as mãos à cabeça. O empate tornou-se uma inevitabilidade.

A partir daí a iniciativa dividiu-se. A Croácia teve mais bola até aos 30 minutos, sempre sob o mando das ligações cerebrais de Luka Modric, aparentemente tão frescas quanto há 10 anos. Marrocos assumiu a partir daí. En-Nesyri esteve perto, após uma grande jogada de entendimento na direita, com o cruzamento de Hakimi a sair demasiado largo.

O 2-1 da Croácia surgiu assim fora de tempo, mas que golo foi! Com o intervalo a bater à porta, Orsic surgiu pela esquerda e com o pé direito rematou em arco, com a bola a bater do lado feliz do poste para entrar na baliza de Bono. Quereria Orsic simplesmente cruzar? Talvez, talvez não. A forma como olha para a baliza faz-nos acreditar que não foi obra do acaso, da fortuna feérica que por vezes se abate sob o futebol. Aquele remate deixou o jogo a pender para um lado, a ver o sol aos quadradinhos, os mesmos que dançam na camisola da equipa balcânica.

Posto isto, para encontro de aborrecidos, de derrotados, não foi uma tarde mal passada no Estádio Khalifa.

Richard Heathcote

A 2.ª parte seria, no entanto, mais aborrecida, não por desleixo dos jogadores mas porque finalmente começaram a aparecer as mazelas e as chamadas de atenção saídas dos corpos depois de um mês a jogar nos limites. Marrocos, nesse particular, sofreu mais, depois de um Mundial a jogar com a faca entre os dentes, num futebol que pede muito à capacidade de sacrifício dos jogadores. Dari e El Yamiq, guerreiros máximos, tombaram. Outros arfavam em campo.

Ainda assim, o jogo voltou a ganhar emoção no último quarto de hora. En-Nesyri, de novo, permitiu grande defesa a Livakovic, um dos guardiões deste Mundial, a fazer empolar ainda mais as dúvidas de quem não entende como ainda joga no Dinamo Zagreb. O avançado marroquino, nosso carrasco pessoal, ainda podia ter levado tudo para prolongamento nos descontos, mas o voo saiu-lhe, desta vez, demasiado no campo do ar rarefeito.

Talvez fosse um prémio justo, ver Marrocos com mais alguns minutos para discutir o bronze. Mas o jogo disse muito sobre o Mundial das duas equipas, sólido, forte. E quando assim é, não há jogos a feijões, não há honra que não vá ser salva. Porque honra pode ser tudo.