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Mundial 2022

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Manifestações a favor de Maradona, loucura com Messi, orações a Alá: como o anticolonialismo criou no Bangladesh uma febre pela Argentina

As ruas de Daca, capital do país asiático, enchem-se para assistir às partidas dos bicampeões mundiais e até apresentadoras de televisão se vestem com camisolas argentinas. Um amor que parte de sentimentos anti-coloniais e tem origem nas epopeias de Diego no México 1986

Pedro Barata

K M Asad/Getty

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Lionel Andrés Messi Cuccittini tinha acabado de dominar a bola com o seu bendito pé esquerdo, deixando-a dócil à sua frente. O remate saiu cruzado, sem hipóteses para o super-herói quadrienal que vive em Ochoa. 1-0 para a Argentina e caminho aberto para o crucial triunfo contra o México.

Quando Leo colocou a bola no fundo da baliza, houve uma loucura a invadir uma universidade. Gente aos saltos, eufórica, pulando em direção ao ecrã gigante que concentrava milhares de olhares. Mas não, não era na universidade de Buenos Aires. Era na Daffodil University, em Daca, capital do Bangladesh.

Quando o apito final soou, eram cerca das 3 da manhã na cidade onde habitam mais de 8 milhões de pessoas, localizada a mais de meio mundo de distância da Argentina. Ainda assim, milhares saíram à rua, envergando bandeiras azuis-celeste e brancas, vestindo camisolas de Messi ou entoando em coro o nome do astro que agora joga no PSG.

Um cenário que se vai repetindo Mundial após Mundial, tornando o Bangladesh quase numa província argentina do outro lado do planeta. Mas porquê tanto fervor?

Há uma infinidade de Maradonas em Diego Armando e, dentro dessa quase multiplicação de personalidade do diez, também houve espaço para ganhar uma nação de 165 milhões de almas para a causa da seleção do seu país.

No Bangladesh, as feridas, traumas e ressentimentos face ao colonialismo britânico estão bem presentes. “É uma história de 200 anos de opressão, tormento e violência”, conta o jornalista Osman Gani ao site “Football Paradise”.

Ora, no contexto desta animosidade, em 1986, quando as televisões já mostravam para todo o mundo a competição mais importante do planeta futebol, Maradona fez do México o jardim da sua elevação pessoal ao Olimpo do desporto. E um momento decisivo dessa epopeia deu-se, justamente, contra Inglaterra, com a mano de dios e o barrilete cósmico a entrarem pelos olhos dentro da gente do Bangladesh.

Mehedi Sujan, editor de desporto do jornal “New Age” do país asiático, considera, ao portal “Infobae”, que o México 1986 “transformou Maradona uma super estrela” no Bangladesh, levando a que, por arrasto, a “Argentina se tornasse na seleção mais popular num país onde nem se sonha com ter a própria seleção num Mundial”.

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Messi, recebido em Daca para o amigável entre a Argentina e aa Nigéria em 2011
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Messi, recebido em Daca para o amigável entre a Argentina e aa Nigéria em 2011

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Inimigo do meu inimigo, meu amigo é. Foi isso que sucedeu com a Argentina e o Bangladesh. Não só Maradona derrotava os ingleses dentro de campo, como fora dele os argentinos também sofriam com o poderio militar britânico nas Malvinas. A seleção de 1986 — e Diego em particular — nunca esqueceu que jogava, também, em homenagem aos mortos na guerra e essa mensagem tocou corações do outro lado do mundo.

É o que explica Ifty Mahmud, jornalista do “Prothom Alo”, entrevistado num trabalho do Federação da Argentina sobre este fenómeno. “Há um importante fator anti-colonial aqui. Maradona derrotou os ingleses, enquanto, por exemplo, David Beckham, um ídolo noutros países asiáticos, nunca foi popular aqui. Maradona era um louco, e nós no Bangladesh amamos os loucos. A forma como enganou o poder colonial, enganando-o à luz do dia, teve um impacto simbólico brutal”, refere Mahmud.

Mehedi Sujan acredita que pode, também, haver uma “identificação” das pessoas do Bangladesh com povos sul-americanos, os quais “enfrentaram as mesmas dificuldades económicas e exploração por parte das potências ocidentais”. Para o jornalista, Maradona era um “ídolo com o qual a gente se podia identificar”, até pela “baixa estatura” num dos países do mundo onde os homens têm uma média de altura mais baixa (1,62 metros).

Subitamente, um semi-dios no topo do mundo parecia-se àquela gente. Tinha os mesmos inimigos, vinha da pobreza, era baixo, falava em derrotar as potências imperiais. A partir de 1986, Diego tornou-se capa de cadernos, garrafas de água, símbolo estampado em camisolas. Faziam-se até chuteiras Puma King em subúrbios de Daca.

O apoio dado à Argentina de Maradona estendeu-se às seleções que se seguiriam, às equipas de Ortega e Batistuta, Crespo e Verón. Pelo meio, em 1994, quando Diego foi expulso do Mundial dos Estados Unidos por um controlo anti-doping positivo, houve multidunárias manifestações em protesto contra a FIFA.

Com a afirmação de Lionel Messi como estrela global, a paixão pela camisola celeste ganhou novo ícone. Pintam-se murais em Daca em homenagem a Leo e usam-se todo o tipo de adereços referentes ao atual diez.

Depois do triunfo contra o México, uma jornalista apresentou as notícias na televisão com a camisola da Argentina.

Um dos pontos altos desta relação deu-se em setembro de 2011, quando o esforço — e o dinheiro — colocados por uma televisão conseguiu organizar, em Daca, um amigável entre a Argentina e a Nigéria. Messi foi recebido como chefe de Estado, o estádio encheu e foram colocados ecrãs gigantes para ver o particular, que terminaria com triunfo sul-americano por 3-1 (marcaram Di María, Higuaín e, na própria baliza, Elderson Echiéjilé, então no Sporting de Braga).

Saif Tanvir é o criador de um grupo de Facebook chamado “Argentina Football Fans Bangladesh”. Em declarações à Federação Argentina, o jovem conta que todos os anos “são organizados eventos” em homenagem à seleção bicampeã do mundo. São, também, feitas “orações a Alá antes dos torneios, pedindo que a Argentina possa vencer”.

O Mundial de 2010 juntou os dois profetas desta paixão, Messi no campo e Maradona no banco. Durante o torneio da África do Sul, a “AFP” fez uma reportagem sobre esta paixão no Bangladesh. Lá encontrou Abdul Kahhar Palash, dono de uma pequena oficina de manufatura de tecidos.

O negócio corria mal até às semanas antes do começo da competição. Com o crescimento do ferver em torno de Leo e Diego, Abdul Kahhar Palash começou a fazer bandeiras da Argentina, camisolas e tudo o que fosse celeste e branco. Foi a salvação da loja.

Numa zona do globo que tem o críquete como catalisador de paixão desportiva, a liga do Bangladesh promoveu, em novembro de 2020, um minuto de silêncio por Maradona, para homenagear o pelusa depois da sua morte. Mais um sinal de devoção de um país que, no que toca a pontapés na bola, dedica o seu amor a uns rapazes que estão longe da vista, mas ao lado do coração.