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Mesmo num labirinto de ideias desencontradas, Messi tem sempre o destino no pé esquerdo

Crónica de Jogo

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A Argentina ia apresentando um jogo mole e previsível, contra um México competente e mais reativo, quando Lionel Messi rematou de longe, superando a lenda de Memo Ochoa. Enzo Fernández, o jovem médio do Benfica, marcou um golaço e trocou um abraço feliz com o 10

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

O medo a perder é uma das tragédias do futebolista. A besta é fina e silenciosa. Come tecidos a que não deveria ter acesso. É mesquinha e impiedosa, sabe de cor o nome das vítimas. Inibe o que podem fazer cada um daqueles homens, uns mais artistas que outros, que exercem a profissão com um calçado com dentes cravados. Mas depois aparecem aqueles que fazem escritores e cronistas dignificarem a literatura com textos que explicam o que é o futebol. O futebol a sério.

Lionel foi Messi esta noite, testemunharam-no 88,966 pessoas. Não é que tenha jogado o que costuma jogar, ou que tenha ligado com os colegas como pareciam ligar antes de chegarem ao Catar. O peso que tem nos ombros enterraria naquele relvado qualquer criatura, humana ou divina. Quando faltavam quase 25 minutos para o apito final, num lapso de vigilância alheia, meteu no bolso a pobreza do jogo da Argentina, e bateu na bola com a canhota. Guillermo Ochoa, outra figura que pertence ao convívio dos deuses, esticou-se, ironicamente vestido com as cores do Super-Homem. Mas Leo, um dia depois do segundo aniversário da morte de Diego, meteu a bola no lugar onde só a perfeição tem chave. Os muitos argentinos no Lusail Stadium rugiram de alegria. A tensão tem cheiro. Um argentino começou a meter as mãos na cabeça aos 10’. Isso é ser argentino.

Messi também sabe abraçar como um pai orgulhoso. Foi o que fez quando Enzo Fernández enganou com um passo de dança um defesa mexicano e, com o estilo que pertence aos futebolistas especiais, meteu uma bola que desviava de Memo Ochoa à medida que chegava à gloriosa rede. Todos os jogadores correram para o 24, o pibe que leva uma parte do céu nas botas. Qué golazo. Depois da festa, ganhou o direito a um momento a dois com don Lionel, que sorria para ele, derretendo-se. Depois de entrar durante o flagelo que foi a estreia com a Arábia Saudita, Lionel Scaloni terá em Enzo Fernández um trunfo importante para o derradeiro jogo com a Polónia.

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Os argentinos nas bancadas cantavam para a tal besta fina e silenciosa ficar atordoada. Foram demasiados minutos com um futebol pobre, pouco agressivo com bola, chegando pouco à frente, sem ideias para romper linhas, com poucas tabelas e dribles, um departamento gerido por Messi e Ángel di María, demasiado perto da linha, longe dos sócios com quem poderia partilhar alguns passes. Também Alexis Mac Allister teve momentos interessantes. Foi uma das quatro alterações no 11 do selecionador argentino, mais nervoso do que nunca. Gonzalo Montiel, Lisandro Martínez, Marcos Acuña e Guido Rodríguez, que chegou a juntar-se aos centrais para construir, foram as outras novidades.

Já em vantagem, os animados e tremendamente apaixonados sul-americanos devolveram os “olé” aos mexicanos, que têm tanta força na garganta como no coração. “Very emotional, very emotional”, dizia o segurança aqui ao lado, com um sorriso excelente. Tremenda exibição de amor ao país. Foram, aliás, eles e os argentinos, os protagonistas do jogo até ao golo de Messi.

Desta vez, depois de uma espécie de 4-4-2 demasiado estático e impotente no primeiro jogo, a Argentina surgiu um pouco diferente. Guido mais posicional, de Paul (muito em baixo até ao 1-0) pisava outras zonas, Mac Allister juntava-se e fazia um trio no meio do quintal, com liberdade para chegar perto da linha de cal pela esquerda. Havia mais mobilidade. Lionel Messi também deixou de estar tão preso aos centrais. Participou mais. A entrada para o aquecimento já o denunciara, teria sempre de ser assim.

Do outro lado, o México ocupava a cancha num 5-3-2. Héctor Herrera, Andrés Guardado e Luis Chávez taparam as entradas pelo meio, ainda que nem sempre capazes. O ouro estava na frente, se não falarmos de Ochoa naturalmente, com Hirving Lozano e Alexis Vega, o mais ameaçador, na frente a desatar em correrias sempre que recuperavam a bola. Foi essa a única forma de o México fazer mossa, que tinha em Nicolás Otamendi uma enorme parede. Não conseguiam criar, os mexicanos, funcionavam na reação, nos duelos agressivos. Houve muita “dignidade”, como diria no final Gerardo Martino, o selecionador mexicano que é argentino. Mas pouco mais do que isso.

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No minuto 10 cantou-se “olé, olé, olé, Diego, Diego…”, recordando Maradona. Os atrasos aos guarda-redes continuam a ser assobiados, o que nos leva para outros tempos em que se podia agarrar com as mãos. “Ay, ay, ay, ay, canta y no llores, porque cantando se alegran, cielito Lindo los corazones”, ouvia-se. A festa do futebol.

O golaço de Messi, aos 64’, demonstrou mais uma vez que o futebol depende do que acontece na cabeça, da luta entre as feras invisíveis debaixo da pele de cada um. O golo, esta noite, foi mesmo o melhor preparador físico que já se viu. Beneficiando de um rival mais ousado (Martino desmontou a linha de 5), os argentinos soltaram-se, pareciam mais, correram com outra leveza e pensavam em algo diferente, conheceram outras rotas e ideias. Já dizia Menotti, um dos magos desta terra distante: “Nunca vi uma equipa cansada quando ganhava 3-0”. Esta noite bastou um golo de Messi.

A equipa de Scaloni, com Pablo Aimar completamente exasperado no banco, corrigiu a primeira jornada e aponta aos oitavos de final. O que é certo é que revelou durante muitíssimo tempo fragilidades no jogo e demasiados nervos. Veremos a versão que vem aí contra a Polónia.