É conhecida, porque inusitada e especial foi, a história de quando Emmanuel Macron, ao ler o preto no branco nos jornais e escutar os zunszuns e perguntando às pessoas certas que são acessíveis a um presidente de França, se predispôs a telefonar a Kylian Mbappé, em 2022. Os rumores arreliavam-no. Sendo ele quem é e sabendo o efeito que a pessoa que ele é exerce nas pessoas que sabem quem ele é, Macron quis não tão subtilmente exercer a sua influência estadista ao ouvido de um jogador, um mero futebolista pensarão vocês, para lhe dizer: “Quero que fiques. Não quero que te vás embora agora. És tão importante para o país.”
A operação de charme falaria ao coração de muita gente, qualquer anónimo cidadão francês sentiria as suas fundações a abanarem. Afinal, era o presidente, a máxima figura do Estado, a dar-se ao trabalho de ligar para pedir que ficasse, mas, extravasando o telefonema, a história é ainda mais peculiar pela reação de Mbappé, então com 23 anos, inamovível perante a investida: enternecido, agradeceu a gentileza a Macron, dizendo-lhe que a decisão entre ficar no Paris Saint-Germain ou sair para o Real Madrid era dele e apenas dele, imune a pedidos por mais que viessem dos cargos mais altos do país. A postura, pelos vistos, não caiu mal, mais tarde seria convidado para repastos com o presidente no Eliseu.
Kylian Mbappé, e lê-se ‘Émebáppé’, é feito de histórias e há outra, de quando ele era gaiato e mais suscetível a encantos, que ajuda a entender o futebolista que não se desfez perante o cortejo presidencial. Tinha 14 anos e ainda jogava à bola em Bondy, bairro nos extensos subúrbios de Paris, quando o Real Madrid o convidou a viajar até Valdebebas, centro de treinos merengue, com tudo pago, para durante uma semana conhecer os cantos à casa que lhe queria cuidadosamente mostrar. O clube que mais priva com o êxito quando comparado a adversários europeus, cheio das suas catorze Liga dos Campeões ganhas, pediu a Zinedine Zidane, na altura diretor-desportivo, para um dia ir buscar no seu carro luxuoso, de surpresa, o petiz francês, que até lhe perguntou se precisava de tirar os sapatos para entrar.
Quando regressou a casa, a mãe, Faysa, disse-lhe que teria de limpar as casas de banho da escola onde dava aulas, em Bondy, nos três dias seguintes.
Foram estas as fornalhas que cozinharam Mbappé sem o deixarem queimar em ilusões. Filho de uma antiga andebolista virada professora, árabe e de ascendência argelina, e de Wilfried, um camaronês e cristão que ainda é treinador de futebol no clube do bairro, o desde cedo fenomenal Kylian nunca desprendeu as raízes do chão. Enquanto colou pósteres de Cristiano Ronaldo no quarto, vestido à Real Madrid, ouviu os pais falarem-lhe do sucesso que é efémero e da finitude da fama do futebol, urgindo-o a estudar e fazendo com que aprendesse a falar o inglês que hoje domina e o espanhol que lhe vai dar jeito não tarda. Estará para breve a sua mudança para o Real Madrid, segredo menos escondido do futebol, adiada há dois anos por obra da intervenção de Emmanuel Macron e graça - ou será ao contrário? - dos 630 milhões de euros que o Paris Saint-Germain concordou pagar-lhe, ao longo de três anos e até 2025, no mais chorudo contrato alguma vez feito no desporto.
No domingo, o tão valorizado jogador, melhor marcador da história do clube, fez a sua derradeira aparição no Parque dos Príncipes. E pareceu ser uma mesa de cabeceira face ao peso que teve nas cerimónias do adeus à temporada.
Nada houve de homenagens bonitas ou sentidos gestos de despedida da parte do PSG, que organizou uma festança de entrega do troféu de campeão para os jogadores e preferiu exaltar a despedida do speaker oficial, voz dos jogos caseiros dos parisienses desde 1994. Não fosse o 256.º golo que deixou em campo, além da tarja gigante a cair de um dos topos do estádio, pendurado pela claque, e dir-se-ia que Kylian Mbappé nunca por ali passara, discreto e irrelevante, quando é tudo menos isso. “Cresci como homem, com toda a glória e erros que cometi. Nem sempre mereci o vosso amor ao longo destes sete anos, mas nunca vos tentei enganar”, dissera o jogador, um par de dias antes, no vídeo com o qual deu o au revoir aos adeptos.
De queixo levantado, olhos vidrados na câmara e discurso fluído, com todos os gestos não verbais que sugerem confiança, Kylian Mbappé falou pausadamente durante quase quatro minutos e sem um segundo dedicado a Nasser Al-Khelaïfi, presidente catari do PSG que é hoje o clube que é devido aos triliões injetados pelo Catar. Neste jogo de impressões dadas para fora, perceções públicas e nuances a que também se joga no futebol, terá sido o representante do emirado a desferir o primeiro dos golpes baixos quando, em 2022, segurou uma camisola com “2025” estampado nas costas, no Parque dos Príncipes e ao lado de Mbappé, na pompa com que anunciou a renovação com o jogador. O gesto traiçoeiro deu-lhe a volta: o último dos três anos de contrato estava preso a uma cláusula que dependia da vontade do jogador.
Pensador pela sua própria cabeça, o tectónico Mbappé, planetário futebolista que não tem empresário e se aconselha nos pais, a quem entrega os deveres de o representarem nas conversas que negoceiam milhões e nos apertos de mão que os fecham, não quis ficar em Paris. Com um Mundial conquistado, outro perdido na final, três golos deixados nas duas edições na maior das partidas do futebol e 12 já marcados no torneio, tem um destino para cumprir em Madrid. Mas, aos 25 anos, o terramoto que o francês outra vez provoca no futebol já não pode ser encarado como inesperado.
Kylian Mbappé ostenta mais golos do que Lionel Messi e Cristiano Ronaldo tinham com a mesma idade, comparação numérica relevante porque há muito que o francês é falado para suceder aos estelares estarolas que endeusaram os golos no futebol e os valorizaram, como nunca, enquanto medidores de sucesso. Além de ter arrancado o mais caro contrato alguma vez dado a um desportista, é plausível esperar que Mbappé acabe por superar Miroslav Klose no topo dos goleadores em Mundiais (o alemão tem 16, o francês vai nos 12, empatado com Pelé). Os 180 milhões de euros que custou, em 2018, para o PSG o contratar ao AS Monaco são a segunda transferência mais milionária do futebol, atrás dos €222 milhões de Neymar, e só não obriga o Real Madrid a encarecer o preço na sua etiqueta porque optou por sair de Paris no final do contrato.
A diferença, agora, no trajeto do futebolista-tubarão que comparece a entrevistas com rémoras de seguranças a rodeá-lo para revistarem o edifício antes dele entrar, do ambicioso jogador que domina como poucos a oratória e pode não o parecer, mas é consciente das repercussões dos lugares onde surja, é que Mbappé precisará mais do Real do que o clube carece de uma estrela como ele.
O francês que rejeita contratos publicitários com a Coca-cola, o KFC ou a Betclic, mas, como toda a gente neste mundo, é apanhado na curva ao ter a ligação umbilical do Catar na sua fortuna, irá para uma instituição onde há hierarquia e “todos correm” entre os atacantes, disse Vinicius Jr. feito o enterro do Bayern na Liga dos Campeões. Foi a mensagem subliminar de um futebolista quase tão sublime quanto Mbappé, o recado está entregue e o professor tio que estima o bem-estar merengue, Carlo Ancelotti, bonacheirão que é um falso leviano a permitir veleidades, não será um treinador para dar trela a uma versão pachorrenta de Mbappé, que tantas vezes se escusava a defender no PSG quando a equipa não tinha a bola. O simpático Ancelotti cultiva o à-vontade em Madrid, na liberdade dada aos jogadores incentivou-lhes a responsabilidade, mas longe está de aligeirar a equipa para o à-vontadinha que o totémico Mbappé tinha em Paris, tem na seleção de França e terá, supostamente, no futebol mundial.
O francês reconheceu as suas “qualidades e defeitos” no seu adeus ao PSG, não no que o clube abdicou de dar ao jogador querido por Emmanuel Macron por representar a França real, assente na diversidade dos banlieues, do talento cultivado na periferia da farta Paris que fornece a espinha vertebral à seleção nacional da nação que tem na mestiçagem de culturas, na mescla de origens, a sua força. “Conto com o Real Madrid para libertar o Kylian para os Jogos Olímpicos”, disse já o presidente da mesma França que se rebelou, empurrada pela extrema-direita de Marine le Pen, contra Aya Nakamura, a cantora nascida no Mali e com vida no país desde criança, quando se noticiou que supostamente Macron a convidara a cantar na cerimónia de abertura do evento.
Esta é a encruzilhada de Kylian Mbappé, prestes a sair do país da liberdade e da fraternidade como um dos franceses mais populares no planeta, íman de atenções e dínamo de reações à mínima ação que hoje tenha. Ele quer tudo, provavelmente vai ter tudo, mas a história rumo à grandeza já será um pouco sinuosa, mesmo que ao de leve, já não tão em linha reta como previa.
O que se passou
Zona mista
Estas pessoas descontentes querem muita atenção, especialmente da imprensa, mas o que fica claro é que nestas circunstâncias é impossível sermos campeões.
De novo os adeptos do Benfica, outra vez Roger Schmidt a falar deles. Na sala de imprensa findo o 5-0 ao Arouca, o treinador teve de responder a mais perguntas acerca de mais uma demonstração de desafeto vinda das bancadas. Não teve pudores em vincar um pouco mais a trincheira já existente entre ele e uma franja dos adeptos.
O que vem aí
Segunda-feira, 13
🎾 Prossegue o Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
⚽ Nos futebóis lá de fora, duas partidas de deitar olho: em Espanha, o Barcelona recebe a Real Sociedad (20h, DAZN 2) e, à mesma hora em Inglaterra, o Aston Villa é anfitrião do Liverpool (DAZN 1). É o mote para o resto da semana que terá bastante bola a rolar sobre campos relvados.
Terça-feira, 14
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 Pedala-se na 10.ª etapa do Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
⚽ O Manchester City tem o jogo em atraso que lhe faltava na Premier League e recebe o Tottenham (20h, DAZN 1) que, em caso de vitória, poderá, com alguma ambivalência, beneficiar o grande rival Arsenal na luta pelo título de campeão.
Quarta-feira, 15
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 11.ª etapa do Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
⚽ O Brighton recebe o Chelsea na Premier League (19h45, DAZN 4) pouco antes de o Manchester United abrir as portas de Old Trafford - veremos se com a infiltração/nascente-a-cair-do telhado que fez chover dentro do estádio - ao Newcastle (20h, DAZN 1). Em França, o Nice joga em casa com o PSG (20h, DAZN 3). Mais tarde, em Espanha, ainda se joga um Celta de Vigo-Athletic Bilbao (21h, DAZN 5).
🏆⚽ Depois de garantir a final da Liga Europa, a impressionante Atalanta de Gian Piero Gasperini joga a decisão da Taça de Itália, em Roma, contra a Juventus (20h, Sport TV1).
Quinta-feira, 16
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 12.ª etapa do Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
⚽ A La Liga não dá descanso aos seus que por lá jogam, graças ao Almería-Barcelona (20h30, DAZN 1) e ao Real Sociedad-Valência (21h, DAZN 2) onde estarão envolvidos André Silva, Thierry Correia e André Almeida.
Sexta-feira, 17
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 13.ª etapa do Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
⚽ O embrulho dos dias de semana será algo anti-climático porque o futebol de maior destaque que haverá para ver está na Arábia Saudita, onde o Al Nassr de Cristiano Ronaldo e Otávio defronta o Al Hilal treinado por Jorge Jesus (já campeão) e no qual joga Rúben Neves (19h, Sport TV2).
Sábado, 18
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 A 14.ª etapa do Giro d’Itália terá o segundo contrarrelógio no Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
⚽ Porque é todo um acontecimento esta época no futebol europeu, o Bayer Leverkusen recebe o Augsburg (14h30, DAZN 1) na Bundesliga na antepenúltima oportunidade que uma equipa adversária terá para tentar que a equipa de Xabi Alonso perca um jogo.
Domingo, 19
🎾 Masters 1000 de Roma (a partir das 10h, Sport TV2).
🚴 15.ª etapa do Giro d’Itália (12h45, Eurosport).
🏎️ Grande Prémio de Itália em Fórmula 1 (14h, Sport TV).
⚽ Em Portugal, a derradeira jornada da I Liga vai fechar o campeonato com todos os encontros a realizarem-se à mesma hora (a partir das 18h) e só alguns, portanto, a merecerem transmissão televisiva.
Hoje deu-nos para isto
A pulsar no coração de Hamburgo, quase a sorver do rio Elba e estranhamente vizinho de um parque de diversões, o Millerntor-Stadion guarda o antro de uma maneira diferente de estar no futebol e há coisa de dois anos estremecia, vibrante de gente a rondá-lo, antes de um jogo. A casa do St. Pauli seria especial apenas no facto de ser um de dois estádios entre as duas principais divisões da Alemanha a ter o seu nome original garantido porque protegido pelos estatutos do clube, que proíbem a venda no naming para proveitos comerciais (o outro, já agora, é o recinto do Union Berlin, Alte Försterei o seu nome). Em abril de 2022 como neste fim de semana cirandava muita gente em redor do abrigo do St. Pauli, muitas pessoas com t-shirts castanhas, muitas mais vestindo camisolas pretas com uma caveira estampada, outras com cabelos pintados ou casacos de ganga cheios de símbolos cozidos no tecido.
Quatro portugueses usufruíram do fluente alemão falado por um deles, residente desde há anos nos subúrbios de Hamburgo, para se colocarem na fila de espera na sede da claque do St. Pauli, junto a uma das portas do estádio. Com o recinto cheio, só se alguém com lugar de época reservado não aparecesse a levantar o bilhete poderiam ter vaga no recinto fervilhante, mas, com pouco mais de 29 mil lugares, humilde em espaço. Compensou o lustro puxado à paciência, quatro alemães não compareceram, os quatro amigos puderem entrar e constatar os corredores, as casas de banho e os acessos interiores do Millerntor-Stadion repletos de autocolantes anárquicos nas paredes.
Não é só isso que faz do St. Pauli um exemplo especial, nem os grisalhos adeptos locais que preenchem a bancada atrás da baliza e querem lá saber se quem lá estava não falava alemão, tinham é de cantar e fazer barulho, tomem bandeiras, são para erguer e abanar. Com fiel fervor anti-sistema, marcadamente à esquerda nos ideais e inclusivos por juramento, a natureza e a simbologia do St. Pauli foram influenciados por um grupo de adeptos nos 80 anos, vindos da cena punk e agregadores de outras subculturas mais underground. O clube demorou pouco a adotar a simbologia dos ossos e das caveiras, à pirata. Já este século, seria o primeiro na Alemanha a reunir os sócios e aprovar os princípios que devem nortear o clube, em 2009. Lá escrito, por exemplo, está que “a venda de bens e serviços do St. Pauli rege-se não só por considerações comerciais, mas por princípios de compatibilidade social, oferta diversificada, sustentabilidade e ecologia”. Boa sorte a tentarem encontrar algo parecido em campeonatos de topo na Europa.
É este clube que desenha e produz o próprio equipamento, se põe bem na frente da defesa das causas climática e LGBTQIA+ e vinca por completo a sua vertente política - no estádio, abundam cartazes nos quais se lê “não há futebol para fascistas” ou variações semelhantes - que confirmou, 13 anos depois, o regresso à Bundesliga. Sem freios ou barreiras, os adeptos invadiram o campo, foguetes lançaram-se pelo ar, bandeiras de pirata foram agitadas sem timidez. A subida do St. Pauli ao topo do futebol alemão devolve as suas causas a palcos onde o mediatismo será maior e o clube, por certo, não se acanhará a aproveitá-lo.
Com menos calor e talvez não tanto sol, tenha uma boa semana e cá vai um agradecimento por nos acompanhar por nos ler aí desse lado no site da Tribuna Expresso, onde poderá seguir a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos, também, no Facebook, Instagram e no Twitter.
E pode escutar-nos também no podcast “No Princípio Era a Bola”, onde todas as semanas, com Tomás da Cunha e Rui Malheiro, analisamos o que vai sucedendo nos estádios por esse planeta futebol fora.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt