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Mundial 2022

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Depois do “jogo da paz” de 1998, o “Grande Satanás” reencontra o “Eixo do Mal”. E o Irão - EUA volta a estar carregado de tensão e política

Os dois rivais, sem relações diplomáticas desde 1980, defrontam-se (19h, RTP1) num jogo cujo vencedor garantirá presença na próxima fase. Em 1998, a tensão fora de campo deu lugar a imagens de harmonia dentro do relvado, mas agora os dias anteriores ao duelo foram marcados pelos protestos nas ruas do Irão e pela publicação feita pela Federação dos EUA de uma bandeira adulterada do estado do Médio Oriente, aumentando a apreensão

Pedro Barata

Jerome Prevost/Getty

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“É a mãe de todos os jogos”. Quando o sorteio do Mundial 1998, em França, emparelhou os Estados Unidos da América com o Irão no Grupo F, o presidente da federação norte-americana atribuiu a esse embate a maternidade de todos os encontros do futebol, qual ventre de onde saíram todas as batalhas.

O desafio enfrentava, no campo, dois países que, nas duas décadas anteriores, apresentaram relações diplomáticas marcadas pela tensão. Em 1979, o Xá da Pérsia, Mohamed Reza Pahlevi, apoiado pelos EUA — que tinham orquestrado o golpe de Estado que, em 1953, depôs o primeiro governante iraniano eleito democraticamente —, foi destituído pela Revolução Islâmica, liderada pelo Ayatollah Khomeini. A partir daí, o sequestro durante 444 dias a 52 norte-americanos na embaixada em Teerão ou o apoio dos EUA ao Iraque na guerra (1980-1988) com o Irão foram pontos especialmente conflituosos entre estados sem relações diplomáticas desde 1980.

O duelo que decorreu em Lyon, em 1998, foi antecedido por muita violência verbal. “Há muitas famílias de mártires que desejam que ganhemos”, disse o avançado iraniano Khodadad Azizi. Uma semana antes do jogo de 21 de junho, foi transmitido em França um filme norte-americano intitulado “Not Without My Daughter”, o qual retratava as duras condições de vida no Irão. Como resposta, a embaixada do Irão comunicou que o país estava a “considerar retirar a seleção do Mundial, em protesto contra a emissão de um filme anti-iraniano”. 150 polícias armados foram mobilizados para o desafio, um número “sem precedentes”, garantiu então a FIFA.

Também o protocolo apresentou-se como um problema. O sorteio ditou que o Irão era, para efeitos oficiais, a equipa B e os EUA a equipa A, o que significava que, segundo as normas da FIFA, seriam os iranianos a irem cumprimentar os norte-americanos antes do apito inicial. No entanto, o líder do estado do Médio Oriente proibiu expressamente que os jogadores da seleção caminhassem na direção dos adversários para os saudarem.

Uma solução de compromisso foi encontrada, com forte ajuda da mediação de Mehrdad Masoudi, um iraniano que era assessor de imprensa da FIFA, e do árbitro suíço Urs Meier. Foram os EUA a dirigirem-se à equipa do Irão, que deu aos norte-americanos ramos de rosas, num símbolo de paz, antes de ser tirada uma icónica fotografia de família com todos os futebolistas.

PATRICK KOVARIK/Getty

Os prenúncios de um encontro que seria um prolongamento das guerras tinham dado lugar ao “jogo da paz”.

Dentro de campo, o Irão venceu por 2-1. E se no relvado as imagens foram de uma harmonia que a diplomacia não encontrava, fora dele o resultado foi usado para vincar clivagens. O Ayatollah Khamenei disse que a “força única” demonstrada foi o que “levou à vitória e glória da nação durante a revolução e em todos os conflitos do Irão contra o ”Grande Satanás", diabolizando, assim, os EUA.

A concórdia mostrada em Lyon foi um oásis nas relações entre os estados do Oriente e Ocidente. Em janeiro de 2002, Bush juntou o Irão ao Iraque e à Coreia do Norte no discurso sobre o “Eixo do Mal”.

Hamid Estili festeja o 1-0 para o Irão em 1998

Hamid Estili festeja o 1-0 para o Irão em 1998

PATRICK KOVARIK/Getty

24 anos depois, a tensão vai de Teerão a Doha

Depois do jogo do França 1998, o Catar 2022 volta a ter um duelo entre os rivais diplomáticos. O Irão - EUA faz parte da última jornada do Grupo B, sabendo ambas as seleções que, com um triunfo, seguirão em frente.

Para o conjunto orientado por Carlos Queiroz, este Mundial surge numa altura em que decorre a mais relevante onda de manifestações contra o regime que governa com mão dura o país desde a Revolução Islâmica, em 1979. Após a morte de Masha Amini, uma mulher que faleceu no hospital a 16 de setembro, três dias após ser detida pela polícia da moralidade por usar o véu islâmico alegadamente de forma incorreta, os protestos têm-se mantido, sendo fortemente reprimidos pelas forças de segurança. Segundos dados avançados pelo grupo Ativistas dos Direitos Humanos, mais de 300 pessoas foram mortas e quase 15.000 detidas.

O momento que se vive no Irão tem centrado atenções no estágio da equipa, seja com Taremi a enviar “condolências ao povo” ou com a recusa dos jogadores em cantarem o hino contra Inglaterra. Os festejos do triunfo contra o País de Gales foram carregados de emoção.

Mas o que mais aqueceu a antevisão de novo Irão - EUA veio da internet, como se fosse um símbolo da diferença do mundo do França 1998 para o Catar 2022. A Federação de Futebol dos EUA publicou uma imagem da classificação do Grupo B na qual a bandeira do Irão não tinha o símbolo de Alá, emblema da República Islâmica.

À CNN, a federação norte-americana disse que a ideia era ter a bandeira alterada online durante 24 horas para “mostrar apoio às mulheres do Irão que lutam por direitos humanos básicos”. Após um dia, a bandeira oficial foi, efetivamente, reposta.

A imagem com a bandeira do Irão sem o símbolo da República Islâmica que foi publicada pela Federação dos EUA

A imagem com a bandeira do Irão sem o símbolo da República Islâmica que foi publicada pela Federação dos EUA

As reações vindas do Oriente não se fizeram esperar. A agência de notícias estatal do Irão considerou que os EUA deveriam ser suspensos por 10 jogos por “ofenderem a dignidade” do país. O selecionador norte-americano, Gregg Berhalter, pediu desculpa pela publicação da federação, dizendo que “por vezes há coisas que fogem ao controlo” de jogadores e treinadores.

As conferências de imprensa mais quentes do Mundial

As presenças de iranianos e norte-americanos diante dos jornalistas nas vésperas do desafio foram, seguramente, as mais quentes do torneio. Gregg Berhalter e Tyler Adams, o capitão dos EUA, foram bombardeados com perguntas, no mínimo, pouco comuns, quase todas vindas de jornalistas do Irão.

“Como se sentem por representar um país em que há tanto racismo e causas como o Black Liver Matters?”; “O que acham de eu [um jornalista iraniano] não poder entrar no vosso país e vocês poderem entrar livremente no meu?”; “Tyler Adams, dizes que apoias os iranianos, mas pronuncias mal o nome do nosso país”; "Acham que nos EUA apoiam o futebol ou é-lhes indiferente? Estive em Nova Iorque há alguns anos e ninguém parecia importar-se com a seleção"; “Que percentagem do mundo achas que apoiará o Irão e que percentagem achas que apoiará os EUA?” - foram algumas das perguntas colocadas.

O treinador e o médio foram tentando fintar as perguntas da melhor forma, garantindo “foco no jogo” e compromisso com a “luta contra a discriminação”.

Do lado do Irão, Carlos Queiroz foi ovacionado por jornalistas na conferência em vários momentos. O técnico português garantiu “solidariedade com todas as causas humanitárias”, mas trouxe à conversa o tema dos ataques a tiro em escolas, um dos problemas dos EUA. “Somos solidários com todas as causas, onde quer que sejam. Se falas de direitos humanos, racismo, crianças a morrerem em ataques nas escolas, somos solidários com tudo. Mas trazemos um sorriso por 90 minutos, essa é a nossa missão”, disse Queiroz.

24 anos depois de Lyon, os EUA e o Irão reencontram-se com os oitavos de final como objetivo comum. Com os conflitos nas ruas iranianas a serem um dos panos de fundo deste Mundial, novo jogo entre os rivais diplomáticos é mais um marco num torneio especialmente carregado de política.