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Crónica de Jogo

Inglaterra - Irão. Demasiado chá para os da Pérsia

Inglaterra arranca o Mundial com um 6-2 capaz de meter os demais favoritos em sentido, com futebol enérgico e fluído, mas com réplica demasiado fraca do Irão de Carlos Queiroz, outrora conhecido pela sua consistência defensiva

Lídia Paralta Gomes

ADRIAN DENNIS

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Vamos recuar quatro anos. Em 2018, o Irão chegava ao último jogo do Grupo B com ténues mas reais esperanças de ainda chegar à fase a eliminar do Mundial da Rússia. A vitória por 1-0 frente a Marrocos no arranque ajudava às contas. A derrota que se seguiu por 1-0 frente a Espanha era natural. Tudo se jogava contra Portugal, na recôndita Saransk. Marcou primeiro a seleção nacional, uma trivelada mágica de Quaresma. Porque só artes circenses pareciam então capazes de derrubar aquela consistência defensiva. O Irão ainda empataria nos descontos e na última jogada do encontro Taremi fez abanar de novo as redes, mas do lado de fora. Todo o português (tirando um em particular) temeu naquele momento.

Mas talvez esse fosse outro Irão.

Não que a primeira passagem de Carlos Queiroz pelo Irão tenha alguma vez sido pacífica (de mês a mês lá vinha um ameaço de adeus por salários em atraso ou conflitos com a federação) mas, no regresso, o português sabia que trabalharia em condições ainda mais complicadas: tomou conta do cargo há apenas dois meses e pelo meio no país irromperam protestos maciços que encontraram oposição também ela maciça das autoridades locais. Os jogadores do Irão sabem que, enquanto dão pontapés na bola, há compatriotas a morrer nas ruas pelo simples direito a mostrar o cabelo, dizer o que pensam, criticar quem neles manda. Desafiar uma autoridade religiosa. Antes da estreia no Catar, o hino ficou por cantar, nem uma boca se moveu, com tudo o que isso pode espoletar num regime sinistro e impiedoso.

Isso ajudará a explicar parte da derrota pesada por 6-2 frente a uma Inglaterra que, por total contraste, transborda frescura, leveza a cada toque de bola, tão diferente de outras Inglaterras que vimos, arrastadas que nem relvado lamacento, por onde estavam habituados a jogar noutras eras. A juventude de Bukayo Saka, Jude Bellingham e Mason Mount entrelaça-se com o canivete suíço que é Harry Kane, com uma tosca braçadeira made in FIFA contra a discriminação, depois da mais colorida pretendida por sete seleções europeias ter sido negada pelo organismo, que quer para si tudo, até os protestos, a forma como se protesta, o que se pode usar num protesto.

O lance que deixou Alireza Beiranvand KO

O lance que deixou Alireza Beiranvand KO

ANNE-CHRISTINE POUJOULAT

A Inglaterra de Southgate jogou muito, principalmente depois do primeiro golo à passagem de uma meia-hora de jogo - que em termos úteis não seriam mais que 15 minutos, após o guardião iraniano ter protagonizado a primeira lesão assustadora deste Mundial, num encontro de cabeças com um colega. Jude Bellingham, 19 anos, marcou depois de uma boa jogada pela esquerda, numa altura em que Inglaterra até insistia mais pela direita.

Harry Maguire, proscrito no United e patrão da defesa na seleção, esteve no primeiro golo e estaria no segundo, ao ganhar de cabeça o lance num canto que Bukayo Saka transformaria numa espécie de vólei que ainda contou com a ajuda de um pequeno toque adversário para entrar. O 3-0 não demoraria: Pickford iniciou o lance na baliza, Bellingham serviu como uma espécie de pivô e lateralizou para Harry Kane, com o melhor ponta de lança do mundo a não ser ponta de lança a cruzar para a área. Raheem Sterling finalizou.

Era duro o tratamento ao Irão, perdido nos posicionamentos, fora dela na abordagem um para um. Do outro lado, Taremi sentia a solidão dos avançados sem bola - o único remate do Irão aconteceu ao 11.º minuto de compensação do primeiro tempo, com Alireza Jahanbakhsh a desaproveitar todo espaço dado pela defesa inglesa, por uma vez.

Os números, que tantas vezes nada dizem, aqui ajudam a contar uma boa parte da história dos primeiros 45 minutos: a Inglaterra completou 366 passes, o segundo maior número numa 1.ª parte desde 1966; o Irão apenas 46, o menor número também desde 1966.

A famigerada agressividade defensiva do Irão voltou a estar desaparecida em combate na 2.ª parte. A Inglaterra, por seu turno, foi líquida, com todo o tempo e espaço para ditar os tempos do jogo, que nem tiveram de ser particularmente enérgicos. Saka bisou aos 62’, perante a dificuldade dos iranianos em secar aquele pé esquerdo. Pelo meio, Taremi reduziu, no único remate enquadrado do Irão até então - bom tiro de primeira, numa jogada de paciência, servido por Gholizadeh. Rashford, recém-entrado, fez o 5-1, não tão diferente do segundo golo de Saka, servido por Harry Kane, que não marcou mas fez tudo o resto nesta estreia.

Já com meia equipa trocada, Southgate ainda viu Jack Grealish de meias para baixo a finalizar um contra-ataque onde mais uma vez o posicionamento defensivo do Irão foi de bradar aos céus. Taremi atenuaria a humilhação já nos descontos, de grande penalidade, ficando no ar a ideia que houve demasiado chá inglês para os da Pérsia, mas talvez estes preferissem estar noutro lado qualquer.