E fez-se a vontade ao Catar. Depois de semanas em que o debate esteve centrado fora do campo — levando a FIFA a pedir que o “foco”estivesse só no futebol—, discutindo e analisando temas menores como a morte de trabalhadores migrantes, a corrupção na candidatura ou os ataques aos homossexuais, a bola começou a rolar e as televisões mostraram ao mundo o que os catarenses querem exibir. Estádios modernos e funcionais, uma cerimónia de abertura cheia de mensagens de amor, todo o circo comprado por uma organização que gastou 220 mil milhões de dólares.
Mas poucos instantes tinham passado desde que o apito inicial do Mundial 2022 tinha sido ouvido e já outra incómoda realidade assombrava os mais altos cargos do Catar, que tudo observavam nas bancadas. A seleção do país anfitrião passou 12 anos a preparar esta competição, também, na vertente desportiva, contratando conhecimento externo para a academia Aspire, juntando uma equipa com muita rodagem, fechando esta seleção para o mais longo estágio de preparação para este Mundial, com quase seis meses de duração e passagens por Espanha ou Áustria. Só que não foi suficiente.
A entrada do Catar no primeiro Mundial da sua história, no seu Mundial, no Mundial erguido à custa de um preço milionário em dólares e incalculável em vidas e dignidade humana, foi a triste demonstração que o dinheiro compra quase tudo, mas não tudo.
30 minutos bastaram para que o Equador demonstrasse uma inequívoca superioridade. Dois golos de Enner Valencia, mais outro anulado antes dos três minutos, deram os três pontos ao sul-americanos e significaram que, pela primeira vez em 22 Mundiais, o anfitrião perdeu o primeiro encontro que disputou.
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“Bem-vindos ao Mundial e ao Catar. O futebol une o mundo. Que comece o espetáculo”.
O showman que há em Gianni Infantino deveria estar aos saltos por dentro ao ter o orgulho de declarar os jogos abertos, qual imperador romano a anunciar pão e circo. Ao seu lado estavam o Emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, e Mohammed Bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Infantino, o homem que escreveu uma carta às seleções a pedir que não houvesse política no Mundial dias antes de ir à cimeira do G20, talvez tivesse querido replicar a imagem do duelo inaugural de há quatro anos, quando teve Bin Salman de um lado e Vladimir Putin do outro. Política sempre fora do Mundial, claro.
Ainda 180 segundos não tinham sido jogados e já o Catar tinha de ir buscar a bola ao fundo das suas redes. O caótico guardião Saad Al Sheeb andou desorientado pela área que deve defender, aproveitando o Equador para marcar através de Enner Valencia. O sistema automático de fora de jogo, em estreia, anulou o golo dos sul-americanos.
Mas era uma inevitabilidade. O Catar não trocava três passes seguidos, não sendo fácil medir onde acabava o nervosismo e começava a pura falta de jeito.
Aos 16', Enner Valencia voltou a aparecer na cara do guarda-redes catarense. Saad Al Sheeb, sempre imprudente, fez um penálti que o avançado do Fenerbahçe de Jorge Jesus não desperdiçou. Pela primeira vez na história, a contagem de golos de um Mundial foi aberta através de um castigo máximo.
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A seleção da casa nem os lançamentos de linha lateral parecia acertar. Aos 22', Almoez Ali viu um amarelo depois de Homan Ahmed não ter conseguido passar a bola ao seu companheiro usando as mãos. Nem vamos descrever o que sucedia quando usava os pés.
Aos 31', o embate, de certa forma, terminou. Moisés Caicedo, o mais entusiasmante dos jovens talentos do Equador — conjuga força com técnica, vigor físico com leitura do meio-campo — abriu para Preciado. Este cruzou da direita e, na área, Valencia foi ao céu do Catar buscar a bola, num cabeceamento com a estética dos golos que vemos em filmes. 2-0.
Em apenas quatro partidas que tem em Mundiais, são já cinco golos para Enner Valencia. O dianteiro sofreu um golpe perto do final do primeiro tempo e jogou condicionado boa parte do segundo tempo, até ser substituído.
Perto do intervalo, Almoez Ali, de cabeça, teve a melhor oportunidade para o Catar, mas a pontaria não foi a melhor. O descanso chegou com a sensação de que o vencedor do jogo inaugural estava encontrado.
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A segunda parte foi uma conjugação do conformismo do Equador com a incapacidade do Catar. Muntari assustou Galindez, mas os anfitriões saíram do jogo sem terem feito, sequer, um remate enquadrado com a baliza. Ibarra esteve perto do 3-0, mas o Equador, com Gonzalo Plata discreto, não forçou muito em busca de mais golos.
Aos 81', um pontapé disparatado do guardião Al Sheeb colocou a bola diretamente fora de campo. O técnico espanhol Felix Sánchez, que dirige o Catar, abriu os braços incrédulo com a prestação dos seus homens. Alguns assobios tímidos vieram das bancadas, enquanto os equatorianos terminaram o jogo ensaiando “olés”.
O que mais se falou sobre o Catar durante os últimos 12 anos não esteve relacionado com a sua seleção. A construção de estádios, um Mundial a meio da época europeia, os abusos de direitos humanos ou o futebol como ferramenta geopolítica eram temas suficientemente importantes para centrarem as discussões. Mas, na verdade, havia no Estado do Médio Oriente uma seleção prestes a estrear-se nestas provas.
O Catar apostou numa preparação quase laboratorial para este campeonato. Sem tradição futebolística de alto nível, centrou recursos na academia Aspire e esperou que as rotinas de uma seleção que foi convidada para a Copa América ou para a Gold Cup lhe permitissem competir no maior palco. 12 anos e muitos estágios depois, a resposta é que todo o investimento não chegou para tornar este conjunto numa seleção competitiva.
O Mundial do Catar está a rolar. Nas bancadas estavam os homens que abriram a torneira dos milhões para que o torneio se disputasse ali. E uma questão surge como inevitável: o quão os preocupa este resultado? Agora que o mais importante para eles foi conseguido, que o cortejo de altos cargos mundiais está a desembarcar em Doha, fará alguma diferença se o Catar, dentro de campo, perde 0-2 ou empata 0-0? Bem-vindos ao Mundial 2022.