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Mundial 2022

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“Foi tudo resolvido numa suite de hotel”: as histórias das denunciantes que expuseram os bastidores de subornos e corrupção do Mundial 2022

Phaedra Almajid e Bonita Mersiades viveram por dentro o processo que levou a FIFA a atribuir o Mundial ao Catar. Por não se calar, Phaedra é, há uma década, perseguida e intimidada, tentando esconder onde vive ou no que trabalha. À Tribuna Expresso, as duas contam as tramas que envolvem a competição que, depois de 12 anos de controvérsia, está prestes a arrancar em Doha

Pedro Barata

FABRICE COFFRINI/Getty

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Phaedra Almajid tinha visto filmes. E, nos ecrãs que projetam a ficção, aquilo não se fazia daquela maneira. No cinema havia túneis escuros, malas de dinheiro vivo, pessoas que não cruzam olhares, secretismo escondido nas sombras. Nada como o que os seus olhos testemunhavam, na realidade dos sentidos.

Era quase meia-noite quando Hassan Al-Thawadi, secretário-geral da candidatura do Catar ao Mundial 2022, foi chamar Phaedra, assessora de imprensa da proposta catarense, para que ela o acompanhasse a um quarto. Na luxuosa suite de um hotel de cinco estrelas em Luanda, Phaedra deveria traduzir as conversas entre o árabe e o francês e, sobretudo, “não contar a ninguém o que se passaria”.

Phaedra entrou numa divisão pela qual foram passando Issa Hayatou, dos Camarões, Jacques Anouma, da Costa do Marfim, e Amos Adamu, da Nigéria. Os três eram membros do Comité Executivo da FIFA, fazendo parte do grupo de 24 homens que votariam na atribuição do Mundial. Foi ali, traduzindo o que era dito do árabe para o francês e do francês para o árabe, que Phaedra diz, à Tribuna Expresso, ter testemunhado “corrupção e suborno”.

“Nós damos 1,5 milhões de dólares às vossas federações e vocês votam em nós”, foi a proposta que Phaedra assegura ter sido feita pela candidatara do Catar e aceite por cada um dos três dirigentes da cúpula da FIFA. “Foi tudo tão simples, resolvido numa suite de um hotel luxuoso. Ali estávamos nós, a oferecer dinheiro abertamente, sem o secretismo dos filmes”, recorda Phaedra

Tudo aconteceu em Luanda, em janeiro de 2010. Decorria em Angola o congresso da Confederação Africana, o qual tinha sido patrocinado, em 1,5 milhões de dólares, pela candidatura do Catar ao Mundial 2022. Dessa forma, os catarenses asseguraram que eram os únicos pretendes à maior competição global que marcariam presença na reunião magna do futebol do continente africano.

Aquela noite em Luanda “mudou o resto da vida” de Phaedra e, diz a mulher que nasceu nos EUA mas passou a infância e adolescência em Paris porque a mãe trabalhava na UNESCO, talvez também “tenha tido um papel fundamental nos últimos 12 anos do futebol mundial”. O Catar diz sempre que o congresso da Confederação Africana foi “um ponto de viragem” para a candidatura, devido ao “impacto” que o discurso de Hassan Al-Thawadi teve.

Laurence Griffiths/Getty

No final daquele ano de 2010, a abertura de um envelope chocou o mundo. Na sala estavam todo o tipo de personagens, desde Vladimir Putin, que veria a Rússia vencer a corrida para o Mundial 2018, até David Cameron e Boris Johnson, respetivamente primeiro-ministro britânico e mayor de Londres, que viram a candidatura inglesa ser derrotada; de Bill Clinton e Morgan Freeman, apoiando a candidatura dos EUA, a Michel Platini e Franz Beckenbauer, membros do comité executivo da FIFA e ainda lendas do futebol sem o nome manchado por casos judiciais.

Todos viram Sepp Blatter ler um papel onde estava escrito “Catar”. A candidatura que todos desprezaram, o país que ninguém esperava que ganhasse, o local onde não havia estádios nem tradição futebolística e onde nem sequer o clima permitia que se disputasse um campeonato no verão, tinha vencido o Mundial.

David Beckham, embaixador da candidatura britânica, mostrou a sua tristeza pela derrota. 12 anos depois, David Beckham, embaixador do Catar 2022, faz alegremente de David Beckham, sorrindo, acenando e aparecendo em vídeos a troco de muitos milhões de pagamento.

“Mundiais de 2018 e 2022 foram atribuídos com base em quem tinha os bolsos mais fundos”

Não só do lado vencedor a corrida aos Mundiais de 2018 e 2022 teve contornos obscuros. Bonita Mersiades foi, entre 2007 e 2010, diretora de comunicação da Federação de Futebol da Austrália, tendo acompanhado a candidatura do seu país à organização do Mundial de 2022. A autora do livro “Whatever It Takes: The Inside Story of the FIFA Way” conta, à Tribuna Expresso, ter testemunhado um processo que “não era baseado no mérito”, mas sim “nos negócios que poderiam ser feitos nos bastidores”.

FABRICE COFFRINI/Getty

Bonita Mersiades revela que a candidatura australiana deu “uma quantidade obscena de dinheiro” a Jack Warner, então vice-presidente da FIFA e presidente da CONCACAF, a Confederação para a América do Norte, Central e Caraíbas [natural da Trinidade e Tobago, Warner esteve envolvido em vários escândalos de corrupção até ser, em 2015, banido para sempre de qualquer atividade relacionada com o futebol]; recorda que houve “contactos” com “votantes na Ásia” e que também “se tentaram convenceram votos em África”; assegura que se tentou fazer uma “troca de votos” com a Rússia; e explica que foi “tornado claro” à candidatura australiana que, “caso certas pessoas fossem contratadas como consultoras”, seria “obtido o voto de Franz Beckenbauer” [que foi investigado em 2016 por fraude e lavagem de dinheiro no Mundial 2006, numa investigação que terminou em 2020 sem veredicto], tal como o apoio público do alemão.

“Tudo isto tinha um preço”, refere Bonita, o que “não era apropriado”. Quando a diretora de comunicação expressou, internamente, as suas preocupações sobre estes movimentos de bastidores, foi despedida.

A australiana não tem dúvidas de que tudo se baseava em “acordos, duplos acordos e contra-acordos”, em quem “poderia dar mais lucros à FIFA ou conseguisse satisfazer mais os votantes”. “Os Mundiais de 2018 e 2022 foram atribuídos com base em quem tinha os bolsos mais fundos”, atira Mersiades.

Ameaças e perseguições

A vitória do Catar rapidamente centrou atenção mediática na desconhecida candidatura. Imprensa internacional, sobretudo britânica, começou a publicar artigos sobre suspeitas de corrupção. Soube-se que o FBI estava, também, a olhar para o que se passava nos bastidores da bola.

BEN STANSALL/Getty

Sob anonimato, Phaedra Almajid falou com uma jornalista do “Sunday Times” sobre o que vira. Contou, pela primeira vez, o que se passara em Luanda. A história chegou ao Parlamento britânico.

Não havia muita gente naquela suite de hotel, pelo que os responsáveis da candidatura do Catar facilmente souberam quem tinha feito aquelas denúncias. Phaedra tinha sido despedida pouco depois do sucedido em Luanda, mas foi em 2011 que “o inferno começou” para ela.

Chegaram ameaças. Chamadas telefónicas, e-mails, carros para cima e para baixo na sua rua. Então, Nasser Al-Khater, CEO do Mundial 2022, fez-lhe um ultimato: “Ou assinas uma declaração dizendo que mentiste, ou processamos-te no valor de um milhão de dólares”, recorda à Tribuna Expresso. “Sou uma mãe solteira, com dois filhos, um deles com graves problemas de saúde. A minha prioridade é, sempre, protegê-los, pelo que assinei o papel. Achava que, depois disso, a minha relação com este Mundial estava terminada”.

Mas, na verdade, estava só a começar. Nos 11 anos seguintes, Phaedra teria sempre o Catar a rondar-lhe a vida.

Literalmente a rondar-lhe. “Ainda hoje passam-nos carros a rondarem a casa com símbolos diplomáticos do Catar. Já fui hackeada e os meus filhos também. Nas primeiras vezes, fez-me chorar, agora já estou quase habituada, é estranho”.

Phaedra Almajid não revela onde vive nem no que trabalha. Já recorreu muitas vezes a proteção policial e teve de mudar de casa. O Mundial do Catar persegue-a, literalmente, há uma década. Se os subornos a que assistiu em Luanda não lhe pareceram como no cinema, esta vida assemelha-se a um filme de terror. “É um inferno”, sintetiza a mulher cuja voz, do outro lado do telefone, mistura tons de receio de mãe com a coragem necessária para lançar cada acusação.

A “traição” do García Report

Em 2012, Michael J. García, um advogado norte-americano, foi contratado pela FIFA para fazer o “García Report”, que deveria investigar as alegações de corrupção no mundo do futebol.

García contactou Phaedra Almajid e Bonita Mersiades para testemunharem. Ambas concordaram, recordando, à Tribuna Expresso, a condição que colocaram para participarem: que o anonimato delas fosse mantido. García prometeu que assim seria.

A promessa não foi mantida. O “García Report” dava pistas claras que levam à entidade das duas mulheres. A partir dali, Phaedra e Bonita tiveram um nome a uni-las: “as denunciantes do Catar”.


Shaun Botterill - FIFA/Getty

A exposição da antiga assessora de comunicação do Catar voltou a piorar as constantes ameaças que foi sofrendo. A partir daquele momento, Phaedra decidiu “falar por si”, sem o encobrimento de um jornal ou de um relatório, porque quando “falou através de outros correu mal”.

“Fomos traídas”. Bonita Mersiades não duvida sobre o que o García Report fez às duas denunciantes, considerando que todo o trabalho foi “uma investigação a brincar”. A investigação criticou a australiana e Phaedra, classificando-as como “não credíveis”, salvaguardando as candidaturas.

Bonita recorda que Micahel J. Garcia “recebeu 10 milhões de dólares” pelo relatório e questiona “por este dinheiro, farias o que te pedissem, não? Foi uma investigação paga pela FIFA para limpar o nome da FIFA".

Mudam (algumas) pessoas, mantém-se a “cultura”

Dos 22 homens do Comité Executivo da FIFA que votaram nas eleições para os Mundiais de 2018 e 2022 — duas semanas antes da eleição, dois dirigentes da FIFA foram banidos, acusados de terem recebido subornos para venderem os seus votos para os Mundiais — , 16 foram ou banidos ou acusados por corrupção, ou estiveram envolvidos numa investigação do FBI a corrupção no futebol, ou foram acusados de violação ética nos últimos anos.

A maior parte dos homens que tomaram decisões que tiveram consequências profundas nos últimos anos do futebol internacional foram associados a corrupção, no entanto nunca foi feita a ligação da corrupção às organizações russa e catarense. É como se um conjunto de dirigentes se tivessem andado a subornar uns aos outros, mas sem terem um objetivo final ligado às candidaturas vencedoras.

As investigações do FBI levaram a um terramoto institucional que, em 2015, fez cair boa parte da cúpula do futebol mundial. Blatter saiu da FIFA, Platini da UEFA, mas, apesar dos anos que ainda faltavam para 2022, o Mundial manteve-se no Catar.

Infantino com Tamin bin Hamada Al-Thani, o Emir do Catar

Infantino com Tamin bin Hamada Al-Thani, o Emir do Catar

Nick Potts - PA Images/Getty

Há muito que histórias sobre a morte de trabalhadores migrantes, o abuso dos mais variados direitos humanos, a repressão de homossexuais ou das mulheres no Catar fazem manchetes em todo o planeta, prejudicando a imagem da FIFA. Phaedra Almajid lembra que a entidade máxima do futebol “cuida imenso das suas relações públicas”, pelo que “o Catar tem de estar a pagar imenso para que a FIFA olhe para outro lado”.

“Foram 10 ou 12 anos de má atenção mediática para a FIFA. O mais lógico seria que mudassem o Mundial de país. Mas não o fizeram. O Catar tem de estar a pagar fortunas. E, afinal de contas, quem é que vive em Doha?”, pergunta Phaedra, em referência à residência de Infantino na capital catarense.

Comparando os tempos de Blatter com os do atual presidente da FIFA, Bonita Mersiades explica que “foram introduzidas algumas políticas novas” e “criada uma estratégia de comunicação reluzente”, mas que “quando há um problema de processos vs cultura, a cultura ganha sempre”, e “nada sobre a cultura da FIFA ou a administração do futebol mundial mudou”.

Phaedra vai mais longe: “Acho que a FIFA de Infantino é pior que a de Blatter. Infantino aprendeu com o melhor e tornou-se no melhor”.

Gianni Infantino é presidente da FIFA desde fevereiro de 2016. Nenhum outro candidato se apresentou às próximas eleições da entidade, pelo que o suíço será reeleito no 73.º congresso da FIFA, em março, no Ruanda, mantendo-se no cargo, pelo menos, até depois do Mundial de 2026.

Phaedra Almajid tem “esperanças” de que, quando o Mundial do Catar terminar, a 18 de dezembro, a sua vida “ganhe alguma normalidade”. Mas não acredita que o torneio desapareça de cena, qual fantasma que perseguirá a bola. “Este Mundial é uma fraude e, durante anos, ouviremos falar de diferentes níveis de corrupção à volta dele”.

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    A atribuição do torneio ao país do Médio Oriente fez parte da teia de subornos que levaram à queda de Blatter ou Platini, expondo práticas criminosas na cúpula do futebol mundial. Nos últimos anos, o desrespeito pelos direitos de trabalhadores —muitos faleceram enquanto construíam as infra-estruturas do torneio em condições indignas — manchou uma competição num país que discrimina mulheres e homossexuais

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    Nada devolverá a vida aos pelo menos 6.500 trabalhadores migrantes que, segundo uma investigação do “The Guardian”, morreram na construção das infraestruturas do Mundial, nem se recuperará uma década de promoção de um país com graves desrespeitos pelos direitos das mulheres ou onde a homossexualidade é crime. Mas diversas organizações pressionam a FIFA, as Federações ou os jogadores para que ainda façam algo para que este Mundial não seja “uma oportunidade perdida”. De Montevidéu a Doha é a rubrica em que, semanalmente e até ao arranque do Mundial no Catar, a Tribuna Expresso trará reportagens e entrevistas sobre a história da mais importante competição global