Subitamente, o futuro é agora. O tempo no ciclismo parece ter entrando numa máquina de aceleração dos minutos, das horas, dos dias, dos anos, atirando-nos a todos para um amanhã que é hoje.
Enquanto Alejandro Valverde sobe e desce a Gran Via sozinho, sendo ovacionado por um público que se despede de um mito de 42 anos que ganhou o disparatado número de 133 corridas, a juventude para a qual às vezes olhamos como coisa do futuro apodera-se do presente.
A lista de vencedores das grandes voltas dos últimos tempos parece o quadro de honra de provas sub-25. Egan Bernal, 22 anos quando ganhou o Tour 2019; Tadej Pogacar, 21 e 22 voltas ao sol quando venceu o Tour 2020 e 2021; Tao Geoghegan Hart, 25 no momento em que levou para casa a rosa do Giro 2020; Jonas Vingegaard, 25 quando se consagrou no Tour 2022.
A estes temos de juntar, a partir de agora, Remco Evenepoel, 22 anos quando foi o melhor na Vuelta 2022. Foi apenas em 2017 que o belga da Quickstep trocou o futebol pelo ciclismo, mas desde aí que o sensacional contra-relogista não tem parado de acelerar, de impor ritmos frenéticos, de derrubar barreiras e deixar boquiaberto o planeta das bicicletas.
Nas corridas de um dia já era evidente que Remco era dos melhores, como se provou pela Liège-Bastogne-Liège desta temporada ou pela Clássica San Sebastián de 2019 e 2022. Nas provas por etapas de uma semana o jovem também já tinha dado sinais do seu poderio, com triunfos no Algarve em 2020 e 2022, na Polónia, Burgos ou Noruega.
Mas restavam dúvidas sobre o que Evenepoel poderia fazer em três semanas. Em 2021, no Giro, não terminou a prova, o que aumentou o debate sobre as capacidades do belga nas grandes voltas.
Na Vuelta, Remco não só provou que pode ganhar, como que consegue dominar nos grandes cenários com contundência. O belga pegou na camisola vermelha à sexta etapa e não mais a largou, dominando em todos os cenários: no contra-relógio, que venceu demonstrando a sua quase motorizada capacidade de impor ritmos elevados durante largos quilómetros, e na montanha, conquistando a tirada do Alto del Piornal e controlando sempre as investidas dos adversários.
Olhar para um ciclista tão irrealmente dominador na luta contra o tempo e que tem resistência para subir com os melhores é pensar imediatamente nas possibilidades de glória que semelhante talento contém. Os belgas, país apaixonado pelo ciclismo como poucos, esperavam ansiosamente pelo regresso de um homem para as grandes voltas, glória que não ia para o país desde que, em 1978, Johan de Muynck vencera o Giro.
A vitória de Evenepoel na Vuelta é, simultaneamente, o dissipar de dúvidas que existiam sobre o que o jovem poderia fazer em grandes voltas e a confirmação de todas as conjecturas que se foram fazendo sobre o prodígio que começou a ganhar corridas poucos meses depois de começar no ciclismo. É um aviso à navegação, que já tomou nota para o futuro.
Tadej Pogacar já disse que Remco lhe “causou uma grande impressão” nesta Vuelta e que “pode ser um grande problema” para o ano que vem, no Tour. “Pensando bem, a edição de 2023 do Tour, com Vingegaard e, oxalá, Bernal, pode ser de nível enorme. Tenho muita vonta de me enfrentar a eles e, em especial, a Remco”, disse o esloveno.
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Depois de terminada a 20.ª etapa da Vuelta, a última de montanha antes da consagração em Madrid, Evenepoel não escondeu a emoção. Cortou a meta em lágrimas, ajoelhou-se, abraçou-se a chorar à mãe. “Ganhar a Vuelta é, simplesmente, incrível. Todas as horas, dias e semanas de treino são dedicadas à minha equipa, à minha família e à Bélgica”, disse o ciclista da Quickstep.
Para estar neste nível ao longo das últimas três semanas, Remco está dois quilos mais magro do que era normal, produto de uma nova dieta. Um regime alimentar que exclui o consumo regular de gelado, a sua grande paixão gastronómica.
O segundo lugar da Vuelta foi para Enric Mas, o espanhol da Movistar que chegou à corrida depois de ser muito criticado por uma frouxa prestação no Tour. Foi a terceira vez que Mas ficou na segunda posição da corrida espanhola, apresentando-se nestas Vuelta fiel à melhor versão de si mesmo: regular, consistente, sem grandes ataques ou aventuras mas capaz de um rendimento constante.
O ciclismo espanhol chegava a esta Vuelta em depressão, depois de mais de 100 etapas seguidas sem vitórias nas grandes voltas e longe das epopeias dos melhores tempos de Contador, Valderde e companhia. No entanto, estas três semanas foram uma espécie de recuperação da esperança.
O jejum de triunfos em etapas foi interrompido por Marc Soler na tirada 5, conseguindo Jesus Herrada, também, ganhar duas jornadas depois. Talvez mais importante do que isto foi a confirmação de que Juan Ayuso e Carlos Rodríguez são nomes a ter em conta para o tal futuro que já é hoje.
Ayuso, companheiro de João Almeida na UAE-Emirates, foi terceiro e tornou-se, aos 19 anos, no segundo mais jovem corredor de sempre a terminar no pódio de uma grande volta. Mais precoce que ele só Henri Cornet, em 1904. Rodríguez, da Ineos, foi, aos 21 anos, sétimo, e provavelmente só não foi melhor devido a uma grave queda na penúltima etapa de montanha.
Para João Almeida, o quinto lugar final surge como muito positivo depois de uma Vuelta em que o próprio admite não ter estado nas melhores condições. É a melhor prestação nacional na prova espanhola desde que, em 1974, Joaquim Agostinho ficou em segundo.
Remco Evenpoel, de camisola vermelha de líder vestida, cerrando os dentes e indo sozinho montanha acima
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A etapa final, com um circuito pelo centro de Madrid, serviu para homenagear Valverde e foi vencida por Juan Sebastián Molano, o colombiano da UAE Emirates de João Almeida e Ivo Oliveira. Em segundo da tirada ficou Mads Pedersen, o dinamarquês que, ganhando três etapas e a camisola verde, foi outra das figuras da Vuelta.
Mais atrás, longe das confusões da discussão da etapa, Remco Evenepoel cruzou a meta de braços no ar, já depois de, num piscar de olho ao seu passado recente, receber os parabéns da Federação Belga de Futebol. Dominou com punho de ferro a Vuelta e vai para 2023 como candidato a praticamente tudo, desde clássicas a corridas de três semanas.
Veremos que planos terá Patrick Lefevere, CEO da Quickstep, para o calendário do belga para a próxima temporada. O que é certo é que Pogacar, Vingegaard e os demais novos aspirantes a dominadores do ciclismo terão estado atentos. Há mais um jovem que transforma promessas de futuro em glórias de presente.