Em 2016, Remco Evenepoel era uma promessa do futebol belga. Com quatro partidas pela seleção sub-15 e outras cinco pela sub-16, o adolescente de 16 anos atuava na formação do Anderlecht, o clube mais titulado do país, sendo frequentemente capitão nas equipas que integrava.
Remco ingressara nas camadas jovens do Anderlecht aos cinco anos, saindo do clube do qual sempre foi adepto aos 11. Durante três voltas ao sol, viveu com o pai — Patrik Evenepoel, antigo ciclista profissional — em Eindhoven e jogou no PSV, regressando em 2014 ao ponto de origem na Bélgica.
Canhoto, Remco começara a sua carreira nos relvados como médio-ofensivo, mas pouco a pouco foi recuando até se fixar, sobretudo, como lateral-esquerdo. Dele eram destacadas as qualidades físicas e as características de líder, desenhando o perfil de um aspirante a profissional da bola que era dos melhores numa das canteras mais famosas da Europa.
Yari Verschaeren, companheiro de Evenepoel na formação do Anderlecht e hoje um dos destaques da equipa principal do clube — e já sete vezes internacional A pela Bélgica — considera que Remco “era parecido” consigo. “Era criativo, bom no passe e com um remate de pé esquerdo poderoso”, recorda Verschaeren.
Remco Evenepoel discute um lance num Bélgica - Itália em sub-15, em fevereiro de 2015
Maurizio Lagana/Getty
Evenepoel sentiu-se “em casa no Anderlecht durante muito tempo”, assumiu à “RTBF”, mas ao longo de 2016 algo mudou. Subitamente, o jovem deixou de ser opção “sem haver uma explicação decente que o justificasse”, diz, o que foi “duro de suportar”. Sem tempo de jogo, Remco “deixou de sorrir” e os pais “deixaram de reconhecer” o filho alegre e cheio de energia a que se tinham habituado, contou o jovem ao “Het Niuwsblad”.
“O prazer desapareceu”, assumiu. E Evenepoel saiu do Anderlecht, o que foi “uma deceção” para o seu companheiro Yari Verschaeren. Remco ainda foi para o Mechelen, com quem esteve perto de assinar contrato profissional, mas estava “quebrado mentalmente” e “sem paixão pelo jogo”.
Perdido o prazer pela bola, Remco, de 17 anos, tomou uma decisão: “que se lixe o futebol”, confessou ao mesmo “Het Niuwsblad”.
Sem a atividade que lhe tinha ocupado boa parte da vida praticamente desde que se conseguia equilibrar, Evenepoel apoiou-se na genética. Por influência do seu pai, Patrick, profissional de ciclismo nos anos 90, Remco sempre foi para os treinos ou para a escola de bicicleta. Começou a praticar ciclismo.
A resistência do adolescente já tinha dado nas vistas no Anderlecht, recordando Yari Verschaeren que “os registos físicos de Evenepoel ainda estão na academia” do clube, até porque “Remco com 16 anos acabava os CD's que continham testes de resistência e ainda ficava a correr mais umas voltas”. Apoiado nessa capacidade de fazer esforços prolongados no tempo, Evenepoel rapidamente se tornou destaque no mundo das duas rodas.
Tendo feito as primeiras corridas na primavera de 2017, seis meses depois já fazia parte de seleções nacionais da Bélgica, país amante do ciclismo como poucos. Em 2018, pouco mais de um ano depois de ter trocado a bola pela bicicleta, Remco Evenepoel foi campeão europeu de juniores e, no final do ano, ganhou quer a prova em linha, quer a competição de contrarrelógio nos Mundiais de juniores na Áustria. No segundo ano como jovem ciclista, o belga passava a ser considerado uma das maiores promessas dos últimos tempos na modalidade.
Evenepoel celebra o título de campeão do mundo de juniores em 2018, na Áustria. Chegou com um minuto e 25 segundos de vantagem para o segundo
Tim de Waele/Getty
As fulgurantes prestações enquanto júnior levaram a Quick-Step, uma das principais equipas profissionais do mundo e uma verdadeira instituição dentro da Bélgica, a assinar um contrato profissional com Evenepoel para 2019. Assim, Remco, com 19 anos feitos em janeiro de 2019, saltou o escalão de sub-23, passando diretamente a correr com os melhores pouco mais de dois anos depois de ingressar no ciclismo.
Num mundo que deveria ser novo para si — porque não praticava a modalidade assim há tanto tempo e estava a dar as primeiras pedalas entre os melhores —, Evenepoel transformou os medos em pressas para triunfar. Na temporada de estreia como elite, venceu a Volta à Bélgica, tornando-se no mais novo de sempre a conquistar a corrida, e a Clásica San Sebastián, uma das provas de um dia mais importantes do calendário internacional.
Em 2019, Evenepoel também foi, por exemplo, medalha de prata nos Campeonatos do Mundo de contrarrelógio, só atrás de Rohan Denis. Motivos suficientes para que aquele jovem de 19 anos — não esquecer que o ciclismo se habituou, durante muito tempo, a que os principais campeões se cozinhassem a fogo lento, a ritmo menos veloz que noutras disciplinas mais propícias a fenómenos adolescentes — se tornasse na coqueluche de uma Bélgica ávida de potenciais vencedores de corridas de três semanas.
Para Evenepoel foi “muito rápido” e “difícil”. A alcunha de “novo Merckx” “não foi fácil de gerir” devido “à pressão”, mas havia algo “de muito positivo”: “voltei a sentir paixão por algo”, reconhece Remco, que escassos dois anos antes tinha enchido a cabeça de tristeza com o futebol.
Evenpoel festeja o triunfo na Clásica San Sebastían de 2019, com apenas 19 anos
David Ramos
Em 2020, Evenepoel começou a temporada, novamente, debaixo do signo da precocidade, tornando-se no mais jovem da história a conquistar o Tour de San Juán, na Argentina. No entanto, depois da pausa das competições devido à pandemia, o então jovem de 20 anos viveu um primeiro momento realmente difícil em cima das duas rodas.
Na Lombardia, — um dos “cinco monumentos”, nome pelo qual são conhecidas as cinco principais competições de um dia do ciclismo —, em agosto de 2020, uma aparatosa queda numa descida fê-lo sofrer uma fratura da pélvis e uma contusão pulmonar. Evenepoel esteve fora das estradas durante nove meses, até ao Giro de Itália de 2021, prova que também abandonaria à etapa 18 depois de uma prestação que o levou a ser muito criticado na Bélgica.
Depois de alguns momentos de dúvidas, Remco voltou à melhor forma em 2022, vencendo a Liège-Bastogne-Liège, outro dos “cinco monumentos” — mais novo a fazê-lo desde 1968 —, as Voltas ao Algarve e Noruega, conquistando o campeonato nacional belga de contrarrelógio e voltando a triunfar na Clásica San Sebastián. E assim chegou à Vuelta com um discurso cauteloso, colocando como “prioridade” a “conquista de etapas”.
Mas a prudência nas palavras não poderia estar a contrastar mais com a audácia das ações. Desde a primeira etapa de montanha da corrida espanhola que o jovem tem sido, claramente, o melhor dos candidatos à geral, superiorizando-se a Primoz Roglic, tricampeão da Vuelta, a João Almeida ou aos também promissores espanhóis Juan Ayuso e Carlos Rodríguez.
O cenário foi especialmente visível na nona etapa: Remco Evenepoel arranca subida acima, mãos nuas no guiador, olhar focado e só em frente, sem colocar a vista no que está atrás de si. Quase sem nunca se levantar, impondo o seu ritmo avassalador, o belga vai deixando a concorrência para trás, qual mota que, pouco a pouco, vai abrindo um espaço maior para os que ousam seguir ao seu ritmo.
O ciclismo é, muitas vezes, corrida em função do que os outros fazem, tendo em conta as forças e fraquezas dos adversários, as suas ações e passividades. Mas, no estilo corajoso de Evenepoel, as corridas transformam-se recorrentemente em exercícios individuais, de imposição de um andamento frenético que mais ninguém consegue seguir, indiferente ao que os outros estejam a fazer.
É Remco e uma mirada no horizonte, nunca no retrovisor.
Evenepoel com vários dos seus principais rivais (Mas, Roglic, Rodríguez) atrás de si. Nenhum deles se tem mostrado ao nível do belga
Justin Setterfield/Getty
Já com umas impressionantes 33 vitórias no seu palmarés, o antigo futebolista está a mostrar na Vuelta a sua melhor versão de sempre. Com 1,12 minutos de vantagem para Enric Mas ou 1,53 para Roglic (e 4,32 para João Almeida, o sétimo da geral), o líder tem uma grande oportunidade para aumentar a sua vantagem no contra-relógio da etapa 10, com 30,9 quilómetros entre Elche e Alicante.
A luta contra o tempo é, justamente, a grande especialidade de Evenepoel, capaz dos esforços prolongados que desde jovem o fizeram evidenciar-se. Numa conferência de imprensa dada na segunda-feira, dia de descanso da Vuelta, Remco desejou conseguir “recuperar bem” para o que aí vem, sublinhando que “está a viver um sonho” e que “não tem noção” de como os seus feitos estão a ser acompanhados na Bélgica, país onde a pressão sobre os ciclistas é idêntica à que noutros locais é exercida sobre os futebolistas. Mantendo alguma prudência no discurso, o jovem destaca o “orgulho pelo que já foi atingido” na Vuelta.
Com o passar do tempo, Evenepoel tem-se reaproximado, enquanto adepto, do futebol. Vai regularmente a partidas do Anderlecht e o seu pai mostrou que, quando venceu a Liège-Bastogne-Liège, o fez com o símbolo do clube inscrito no quadro da máquina que montava. Quando teve a queda grava na Lombardia e se lesionou, um “conforto” que recebeu surgiu através de uma mensagem de voz de Eden Hazard a desejar-lhe sorte na recuperação.
Mesmo de sapatos de ciclismo, Remco atreve-se a dar alguns toques na bola. E, à “RTBF”, reflete sobre as diferenças entre as duas modalidades em que já se destacou: “Há mais horas de puro treino no ciclismo, mas o futebol é mais desgastante para o corpo, magoas-te muito mais. A cada jogo levas uma canelada ou tens um osso a doer-te. Na bicicleta, é muita carga muscular, mas só isso, é diferente. Sendo honesto, depois de hora e meia ou duas horas de futebol eu estava totalmente partido”, reconhece.
Pouco mais de cinco anos depois de ser uma jovem promessa das seleções da Bélgica, Remco Evenepoel faz sonhar um país que acorda todos os dias a pensar num sucessor de Eddy Merckx. Com o seu ritmo próprio, frenético e único, sem olhar para trás, fiel à precocidade que o destaca no ciclismo, indiferente às mágoas que o fizeram sair do campo para se agarrar à estrada que lhe é familiar pela genética.