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Peniche forjou uma lenda? Os 17 anos de Caitlin Simmers, que nem força teve para levantar o troféu e chegou a recusar entrar no circuito

Quando, em 2022, garantiu quase sem querer a qualificação para o circuito mundial, recusou entrar para se preparar melhor e passar mais tempo com a família. Agora, com 17 anos, ganhou a sua primeira etapa do Championship Tour na praia de Supertubos, não tendo sequer força suficiente para erguer sozinha o troféu. Tímida e sem encontrar palavras para dizer, Caitlin Simmers pode bem ser a próxima estrela precoce do surf feminino

Diogo Pombo

Thiago Diz/World Surf League

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Ela está de boné hermeticamente enfiado na cabeça, a pala para diante e puxada ao nariz. Parece querer tapar o máximo possível da face repleta de sardas. Com a sua pequenez aguarda pela chamada e no olhar tem uma rara mistura, que calha a ínfimos humanos em muito poucas modalidades: o fascínio das primeiras coisas entre a timidez, o maravilhar com o acanhamento da ocasião. Chega o momento, ouve-se o nome de Caitlin Simmers e as gentes invasoras da praia que viram as costas ao mar para se focarem no palanque montado na areia animam-se, gritando de alegria.

Os últimos raios de sol já nem se sentem na pele quando ela sobe ao palco, pescoço a retrair-se nos ombros. Passam-lhe para as mãos o generoso troféu e os seus braços cedem. Caitlin é capaz de suportar o peso físico de ter acabado de vencer o MEO Rip Curl Portugal Pro, mas apenas isso. Não consegue levantá-lo, quanto mais lidar com a intangível pressão de ser o centro das atenções da multidão presente e das incontáveis pessoas a verem, em direto, pela transmissão. As envergonhadas palavras provam o que a sua postura aparentava: “Estou muito grata por todo o apoio que senti em Portugal, muito grata pelo surf. E não sei mais o que dizer”.

Caitlin Simmers cala-se e dispensa imediatamente o microfone. O momento requer depois que lhe seja devolvido o troféu e de novo é ajudada por Renato Hickel, diretor de competições da World Surf League, e João Chianca, o vencedor de 26 anos da prova masculina, para conseguir erguer o troféu sobre a cabeça. “É muito pesado, mal o consegui levantar. Talvez para o ano fique mais forte”, diz-nos, com a cerimónia dos prémios já findada e sem o holofote a forçar-lhe mais ainda uma vergonha que a tem sem jeito.

Ela é uma adolescente, tem 17 anos e acabou de ganhar a Courtney Conlogue, que quase a duplica na idade, na final em Supertubos.

Quase apavorada de qualquer pergunta, meia temerária da apoteose elogiosa que a rodeia, Caitlin Simmers foi, em Peniche, uma ambulante amostra de como um talento desabrocha intensamente em alguém que talvez nunca fosse notada se não fosse enquanto estivesse a surfar. Nascida convenientemente em Oceanside, terra na Califórnia, a norte-americana ataca o lábio cadente de qualquer onda com uma força rara em pessoa de existência tão curta, rema para ondas com o dobro ou o triplo do seu tamanho e rasga-lhes leques vastos. “Tento sempre fazer o melhor que posso, nem sequer tenho objetivos para este ano”, admite nas poucas palavras que debita a quatro jornalistas, ainda de fato e licra vestidos. “Não sei mais o que dizer.”

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Thiago Diz/World Surf League

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Thiago Diz/World Surf League

Mas muito há a destacar sobre ela.

A vitória em Peniche, a primeira da carreira, surge à terceira etapa do Championship Tour em que participa na sua época de estreia, que só não veio mais cedo por recusa de Caitlin. Em 2021, quase sem querer, apurou-se para o circuito mundial quando ainda mais imberbe, com ainda maior improbabilidade, venceu o US Open of Surfing em Huntington Beach, um dos locais mais icónicos do surf nos EUA e prova inaugural do Challenger Series, o principal circuito de qualificação. “Acho que agora vou comer pizza com os meus amigos”, disse então, sobre o que ia fazer para celebrar.

Quando o ano avançou e logrou um 3.º lugar em França, garantiu a entrada no CT e viu-se em posição de respeitosamente declinar o que tantas mulheres passam uma vida à pesca nas ondas. “Apesar de, eventualmente, entrar no circuito ser o meu objetivo, gostava de trabalhar no meu surf, passar tempo com família e amigos, ir à escola e estar mais preparada mental e fisicamente para enfrentar o desafio”, justificou então, por escrito. Verbalmente, sendo tão flor de estufa, Caitlin não o explicaria melhor.

Peniche terá nas suas ruas outros sítios com massas a serem fermentadas para lhe servirem futuras pizzas, esteja a vontade da adolescente de novo aí focada. De olhos gentis, cabelo ruivo e qualquer gesto a sair-lhe genuíno, os 17 anos de Simmers até a fizerem “ficar feliz” no mar, durante a final, quando Conlogue regressou de uma onda e respondeu afirmativamente à pergunta da adolescente, que a questionou se tinha feito um tubo. A adversária tinha acabado de fazer 9 pontos numa onda e ela entusiasmada pelo feito alheio.

Há coisa de um ano, Caitlin Simmers estava na Ericeira a confessar ter sentido receio do tamanho das ondas, temor de pouca dura pela desfaçatez que demonstrou em Supertubos onde tentou enfiar-se em esconderijos de água com espaço suficiente para a albergar com os braços no ar. Os 10.000 pontos que leva da vitória deixam-na no segundo lugar do ranking, empatada com a cinco vezes campeã Carissa Moore - com a havaiana e a australiana Stephanie Gilmore, recordista de títulos mundiais (oito) partilha agora a idade no cartão de cidadão aquando da primeira etapa conquistada.

Por entre a timidez, a luta por arranjar palavras e a sardenta cara de quem também é uma ávida skater quando está em terra, Caitlin Simmers parece já ser um projeto de lenda. E só não estará no circuito mundial do próximo ano se, por acaso, voltar a não querer.