A roldana da fortuna de João Chianca tem os seus quês curiosos, quase brincalhões, por vezes até ingratos.
Ele é um novo na vida, 26 anos são nada, mas só chegou ao circuito mundial em 2022, já com meia-idade na escala desportiva de quem fareja uma carreira nos píncaros do surf. Vindo da pegada que o Brasil vinca mais, e mais, e mais na modalidade, João qualificou-se para a elite como nativo de Saquarema, a praia nas redondezas do Rio de Janeiro onde acorrem as multidões mais gordas do tour, com uma quietude muito própria nos olhos. E um brutal talento, também.
Mas, na estreia, uma vez nos seis primeiros eventos ultrapassou a segunda ronda, foi uma mão-cheia de 17.º lugares, vários deles inusitados e a roçar o estapafúrdio: na terra prometida dos tubos, em Pipeline, sobreviveu a uma gruta para de lá sair com uma onda de 9.87 pontos e, mesmo assim, ser eliminado com um somatório de 16.74; mais tarde, na Bells Beach australiana, 17.73 pontos não lhe chegaram para alcançar a segunda ronda. Em duas etapas, notas a roçar a excelência que sobrariam para ganhar a maioria dos heats do ano não lhe chegaram para perdurar até aos 16 melhores surfistas dessa dada prova.
Chamar o azar ao barulho é tentação, mas redutor, menosprezando o sublime John John Florence, adversário que o suplantou em ambas as ocasiões. Render ao celestial o fado de um surfista, os religiosos brasileiros fazem-no muito, é usual ver como atribuem o que de bom, mau, incrível ou triste que lhes acontece a obra divina. Eles muito assumem o papel de meros fantoches de vontades do além, mas não João Chianca. Eliminado do Championship Tour com o corte a meio do ano em 2022, requalificou-se logo para 2023 e aterra em Peniche com um embalo de desforra contra uma força que, portanto, não saberemos bem o que é, nem ele o saberá.
Com um par de meias-finais trazidas das duas etapas inaugurais no Havai, o brasileiro entra numa bolha de excelência em Supertubos - onde, agora, lhe é sempre suficiente. “Eu acredito realmente que essa seja a minha profissão de alma, sei que nasci para fazer o que faço”, dizia em agosto, ao site “Hardcore”, quando já tinha ficado na metade de baixo do ranking a meio da época. Descobridor em série de tubos, hábil domador dos sítios e velocidades a que submeter a prancha no árduo mar de Peniche onde poucas ondas se mostram com faces limpas para mais do que duas manobras, João desembaraça-se de todos, sem soluços, até à final.

Damien Poullenot/World Surf League
Na areia, em cada comparência perante um microfone, a cada heat vencido sem espinhas, via-se um sereno e pacato João Chianca, a desfrutar suavemente como aparentou estar quando falou após a passagem à final: “Estou a segurar estas emoções felizes, mas estranhas. A meia-final foi o meu melhor heat, tudo se está a alinhar. Quero desfrutar do processo, encontrar alguns tubos, preciso de mais duas boas ondas”. Nada lhe parecia perturbar o tronco retilíneo, nem os caracóis entre o loiro e o ruivo nas pontas, quando medita de phones nas orelhas no balneário, antes da final.
Estava mais na sua ilha do que Jack Robinson, o descontraidíssimo australiano com quem o brasileiro forma parelha condigna nos últimos 40 minutos de ação em Supertubos: o primeiro do ranking contra o terceiro, um duelo atual de estatutos pintados de fresco pelo mar, a valia recente à frente da fama dos nomes que arrancam muito mais aplausos de quem está na areia a assistir do que as reações suscitadas por estes prováveis dois melhores surfistas desta temporada.
Com o mar a espreguiçar-se durante a tarde, enchendo-se a partir da hora de almoço apesar do tamanho da ondulação diminuir, esperavam-se ondas não tão indecisas no feitio que fossem apresentar aos surfistas. Jack Robinson desbravou o primeiro caminho, aprofundando-se num tubo que o expele já perto da beira-mar, rodeado só por espuma (vale-lhe um 6.17). João Chianca logo o segue, indo lá parar após entrar e sair de outra caverna que o esconde durante um pouco mais de tempo (7.83). Ambos gesticulam quando as brutas ondas os cospem, clamando por uma boleia dos jetskis que aguardam por pedidos de ajuda ao longe, em alto mar.
A espécie de amigável corrida que os devolve aos litros cúbicos de água salgada onde devem atirar-se às massas de dois ou mais metros mostra o quão agreste é lidar com Supertubos. As motos de água aceleram contra espumas, travam para lhes fugir e encararem de frente, furam urgentemente a fúria aquática com os surfistas a reboque porque remar com os braços contra o mar era um atraso de vida garantido, mesmo se urgidos pela pressa de voltar ao local de partida.

Thiago Diz/World Surf League
Aí pelo equador da final, ambos colecionaram vários tubos que levaram a praia a uníssonos de aplauso. Ao todo, 17 ondas foram surfadas e cada um parecia dono do poder de nunca ficar retido dentro de uma onda. Por cada gruta onde Jack permanecia por um centésimo de segundo mais, João escondia-se um pouco mais na tentativa seguinte, parecia um incrível e um espetacular a ripostar contra o outro. Ao brasileiro pertenceram as ondas que mais brilho deram aos olhos dos jurados (9.07 e 8.50 as melhores) e ele nem parecia saber como segurar a bandeira do Brasil, ou mexer os braços, quando o ergueram em ombros ao voltar à areia.
Portugal não será estranho, de todo, a João Chianca - o irmão, Lucas, é presença habitual na Nazaré quando o fosso subaquático desperta as gargantuescas ondas que parecem querer invadir terra firme. Mas, com resfriar de ânimos possível quando lhe pediram para falar após a final, confessou que tinha “um estranho feeling em relação a Portugal” quando para cá viajou, sentido muito antes do que pensou nos primeiros minutos da final: “Apercebi-me do quão boas estavam as ondas, do quão gosto de tudo isto, de todo o tipo de ondas”. Vencida a final e a sua primeira etapa do CT na carreira, também realizou que “estava enganado” quanto à tal sensação.
A derrota na sexta final da carreira à sua terceira época no circuito não despirá a licra amarela a Jack Robinson, contas feitas o australiano retém a liderança por meros 1.715 pontos face ao brasileiro que, mais ou menos nesta altura do ano passado, andavam a fazer contas à vida para ver como iria regressar ao circuito mundial. A conquista de Peniche ou o abraço que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, vindo para a final, lhe deu na escadaria da praia, não deverá iludir ou inflacionar o terreno João Chianca. Por esses não tão distantes dias de 2022, ele dizia: “É gostoso receber esse carinho e esse presente de ser conhecido e admirado por outras pessoas, mas a verdade é que a gente só tem que calçar as sandálias da humildade, porque no fim isso tudo é ego”.