Tribuna Eventos - Mundial 2022
Esta newsletter segue já a desoras para o caro leitor e eu não podia ser mais honesta: há certos momentos no tempo em que as palavras não chegam, porque somos atropelados pela realidade. Por isso, esta newsletter é essencialmente uma carta de confissão, de confissão da nossa mortalidade, da certeza de que temos de ser humildes perante uma mão que nos empurra e nos coloca no nosso lugar.
E o nosso lugar será algures entre o mundo real e as coisas que não conseguimos explicar. Somos tão pequenos e o futebol ajuda-me a ter poucas certezas. Sou ateia empedernida até ao apito inicial do árbitro. Sou agnóstica de cartão de sócio em punho até ao primeiro golo que nos marcam. Pragmática supersticiosa, que questiona a cor das meias quando saímos derrotados. Será culpa minha? Não sei e nem que viva mais 300 anos o futebol me vai responder a essa pergunta. Ainda bem, que maravilha que assim é. O que se viu ontem em Doha já é do campo da metafísica, do esotérico. É justiça divina, é a mão de deus, é Diego lá em cima a puxar os cordelinhos depois de tantos sinais de que o sorriso não seria argentino.
Mas foi. Ontem, Messi completou o futebol. Com drama, só podia ser assim. O argentino é isto, a história da América do Sul é assim. O realismo mágico inventou-se ali por alguma razão. Na derradeira oportunidade, no maior palco, foi gigante, foi líder, foi humano porque também falhou, foi mago porque continua a parecer deslizar no relvado, naquela leveza inexplicável, mas também foi operário, herói da classe trabalhadora, de colarinho azul e branco. Celeste.
Num Mundial manchado pela corrupção, pelo sangue que escorre de cada viga que sustenta cada estádio do Catar, o futebol, na sua deliciosa inefabilidade, salvou o que foi possível. E pelo caminho salvou-se também a si próprio.
Somos todos um bocadinho iconólatras por natureza e, por isso, quando demos de caras com aquela foto de um Lionel Messi elevado em ombros por adeptos e companheiros, copa na mão, xingámos Lautaro Martínez (mentalmente e não só) por inopinadamente surgir ali, como que saindo da cabeça do mago, do messias, estragando o que seria uma imagem antológica, que nem fresco em capela renascentista, tão semelhante que era a outras vistas em 1986, com outro extraterrestre como protagonista único.
Essa será porventura a única conclusão a que já consegui chegar, horas depois daquele festim de improbabilidade, das voltas e reviravoltas que matam e fazem viver o coração: a foto é perfeita assim mesmo.
E é perfeita porque nos conta a história completa. Uns elevando Messi e Messi elevando os outros, unidos na devoção e na vontade de o ver ganhar a derradeira distinção, não se apequenando pelo caminho, não, pelo contrário, os outros, os colegas, tornando-se maiores, mais importantes numa equipa temível que nos disse ontem que há sempre coração para algo mais.
Não sei se é a melhor final da história, não estava cá para ver outras. Mas este jogo teve a vida toda lá dentro. A vida condensada em duas horas de futebol mais penáltis. E nós testemunhas de boca aberta, na maravilhosa confirmação que tudo é possível num campo de futebol.
Hoje talvez estejamos cansados, mas estamos mais vivos do que nunca.
As histórias do dia
Jogos do dia
O Mundial acabou e eu já tenho saudades. Agora só daqui a três anos e meio, algures nos Estados Unidos, México ou Canadá, já sem Messi ou Cristiano Ronaldo ou Luka Modric, mas com Kylian Mbappé, com Pedri e Gavi, com Bernardo e Bruno, talvez com uma equipa de Marrocos que já não será surpresa, espero que com a mesma imprevisibilidade e magia, com mais democracia e respeito pelo trabalhador, pela mulher, pela pessoa LGBTQI-mais. Ontem, naquela final, percebemos a quem pertence o futebol e não é ao dinheiro nem à FIFA nem a Infantino nem ao Sheik: é aos futebolistas e ao povo.
A foto
Este foi o último episódio da newsletter diária “Vamos Catar o Mundial”, onde tentámos resumir com palavras tudo aquilo que se foi passando por Doha, o melhor e o pior - e não nos esqueçamos do pior, nem agora nem no futuro.
Obrigada por ter estado por aí ao longo deste mês de alegrias, desilusões, de corações sincopados, onde o futebol, quando lhe foi permitido ser apenas futebol, quando não foi raptado por quem lhe quer mal, nos deu das histórias mais bonitas, das reviravoltas mais históricas, dos inesperados mais inesperáveis. Continue a acompanhar-nos no nosso site e na próxima semana cá estaremos já na nossa emissão regular, com a newsletter 12:45.
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