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No que bem podia ser a Federer Cup, tudo se juntou para ver “a habilidade natural para beijar a bola com a raquete” uma última vez

Ténis

GLYN KIRK/Getty

Nas horas que antecederam a despedida de Roger Federer dos courts, na Laver Cup que, por culpa da ocasião, virou momentaneamente o foco do ténis em Londres (e no mundo), os elogios em massa ao suíço que está a viver o torneio dando “alcunhas a todos” e “sempre a rir-se” em modo “pateta” sucederam-se durante todo o dia. Reportagem da capital inglesa, onde decorre o torneio que acolhe o último jogo da carreira do tenista suíço

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Diogo Pombo

Diogo Pombo

em Londres

Jornalista

Londres espreguiçou-se chuvosa, ergueu-se nublada e caminhava já solarenga, com a barriga cheia do almoço e parcas nuvens a pintalgar-lhe o céu, quando o segundo jogo do primeiro dia da Laver Cup tentava ser um chamariz para o oeste da cidade, onde o Tamisa se dobra numa chicane aquática e se construiu uma arena numa espécie de península que a terra formou na zona de Greenwich. E o torneio, aqui, é honesto. Não se tenta mascarar do que não é, as carruagens de metro e autocarros de dois andares não se estampam com cartazes da prova de exibição, se há caras dos monstros expostas em lugares londrinos onde mais gente passa, estarão bem escondidas.

Não que fosse um mero evento no calendário, mas, até há coisa de uma semana, a itinerante Laver Cup era mais um endinheirado torneio de exibição do que uma prova a não perder na agenda do ténis. Sai-se da estação de metro mais próxima, nem a 200 metros da Arena O2 aportuguesada para Domo do Milénio pelos dotes tradutores do Dr. Google e, aí sim, tarjas, cartazes e ecrãs eletrónicos traçam o rumo à peregrinação. Mas uma perna também foi passada à logística, a mesma partida pregada: em nenhures se avista alguma mensagem sobre o que relevou, e muito, este torneio para ser o acontecimento tenístico do ano na metrópole que, a vinte e poucos quilómetros, acolhe os courts esverdeados de Wimbledon.

Só há nove dias soubemos que Roger Federer se despediria da vida de jogador no torneio que fundou, anunciando-o pela própria voz e escrita em redes sociais que nem existiam quando ele arrancou a carreira, em 1998. A Laver Cup é dele, mas, fosse teletransportado um extraterrestre para o complexo, não adivinharia que o torneio é sobre o suíço: nem no interior da arena, ao circundar o espaço pelos corredores interiores que dão acesso à bancada, se nota a exaltação de um homem ou qualquer inflação do canto do cisne que o torneio acolherá.

Seja, ou não, sintoma da explícita vontade de Federer, um tipo de recatada personalidade e gracioso a amaciar uma bola de ténis em qualquer pancada dada com a raquete, o torneio não transborda de referências à sua despedida como poderia - e deveria.

ANDY RAIN

“Só vim cá pelo Federer” ou alguma variante da frase é ouvida sem parcimónia na arena onde, na quinta-feira, mero dia para sessões de treino, quase 15 mil pessoas acolheram para assistirem à descontraída troca de bolas entre quatro jogadores que a organização da Laver Cup fez por apimentar. No mesmo campo, Rafael Nadal e Novak Djokovic juntaram-se a Roger, rivais de uma era que construíram um teto no ténis durante mais de uma década, barrando o acesso à cúpula da modalidade que só o quarto elemento desse treino, Andy Murray, roçou no seu auge. Essa cerca de uma hora em que 66 títulos do Grand Slam e 933 semanas na liderança do ranking coabitaram alegremente, tentando truques e jogadas bonitas, bastaria para valer a pena participar no enchimento desta arena em Londres.

Ainda a sessão noturna (a partir das 19h) desta sexta-feira era uma miragem e já raro era o assento vazio nas bancadas escurecidas, para a luz ser concentrada no court de piso negro e rápido. Por vezes, é difícil não dispersar a atenção face ao floreado extra-ténis que está na genética da Laver Cup: a cada hora, a torrente de fotografias ou pequenos vídeos publicados nas redes sociais dos jogadores de camisa e fato a passearem nas margens do Tamisa, abotoarem as mangas uns aos outros, a tirarem selfies sorridentes ou a introduzirem-se em jantares de gala é alimentada ferozmente. O oxigénio de amiguismo é o mais respirado um pouco por todo o lado.

E mesmo que não publicitado visualmente no complexo da Laver Cup, a presença subliminar de pitadas do que compõe Roger Federer está em todo o lado. Muito do staff da prova é vestido pela Uniqlo, a marca desportiva que o patrocina; as lojas da indumentária oficial da prova vendem peças produzidas pela empresa japonesa; há filas de pessoas diante das bancas da On para experimentarem pares de calcantes da marca na qual o tenista é acionista e dá nome a vários modelos. O torneio tem o nome do octogenário ex-tenista australiano, dono de dois Grand Slams de carreira - ganhou os quatro no mesmo ano, por duas vezes - e não se chama Federer Cup, só este ano, quase por cortesia.

O maleitoso joelho de Roger que, por fim, cedeu aos seus 41 anos e o fez ver que não resiste a mais obras para deixar o suíço competir a um nível alto obrigou-o a jogar apenas, ao que parece, uma última partida de pares junto a quem só poderia ser. Rafael Nadal será o parceiro 19 anos volvidos do primeiro frente-a-frente entre as duas lendas, em 2003 e também em pares, para um simbólico encerramento de ciclo. A última dança de Federer será na fusão ‘Fedal’, adversários em 40 jogos e 24 finais que se tornaram cúmplices com os anos e esse é o assunto, a atração maior, o cabeça de cartaz de um evento que nem sequer os tem (ou a Djokovic) como o tenista com melhor ranking.

Esse é o simpático e cândido Casper Ruud. O pacato norueguês é o segundo da hierarquia ATP e entre os pingos da torrencial chuvada causada pela presença de tantas estrelas venceu o jogo inaugural do dia, contra Jack Sock, dando o primeiro ponto à Team Europe e admitindo que “não sabia para onde olhar” quando confirmou o match point e se virou para o seu banco.

Lá estavam Roger, Novak, Rafa e Andy, lendas a aplaudirem-no atrás de Björn Borg, o capitão da equipa a quem Federer chama de rei “em sueco”, no idioma em que às vezes também lhe fala. “É o mais barulhento e divertido no balneário, dá alcunhas a todos”, diz Ruud quando chega a sua vez de falar, após a vitória, revelando como Nadal, no seu canto entre paredes, é o oposto da compulsiva obsessão que desde rapazola mostra em court, a ordenar os seus pertences: “É muito desarrumado, sapatos e roupas espalhados por todo o lado”.

ANDY RAIN

O responsável pela segunda vitória de um confronto, à partida, flagrantemente desequilibrado nos nomes, reforça a aura descontraída que engole o torneio, onde até as perguntas colocadas aos tenistas se escusam a perscrutá-los por questões técnicas. Parece excesso de formalismo pedir-lhes que falem de competição. “O ambiente está muito bom, estamos sempre a trocar piadas, o Roger está ‘um pateta’ e a rir-se constantemente, o que acrescenta energia à equipa”, retrata Stefanos Tsitsipas, atropelador de Diego Schwartzman no segundo jogo desta sexta-feira que chegou a ser interrompido - um homem, a protestar pelo “fim dos jatos privados no Reino Unido”, incendiou o próprio braço após invadir o court.

Nem o gesto à beira de tantos olhares, câmaras e objetivas fotográficas parece ter beliscado a camada de atmosfera a que a Laver Cup se parece ter elevado em reverência a uma lenda que se despede. “É um privilégio tão grande estar aqui para a ‘Last Dance’”, confessaria, ainda, o tenista grego, que já ganhou a cada um dos Big Three do ténis e a Andy Murray, por estes dias falado nas mesmas preces habitualmente reservadas ao trio de monstros. Sobre todos Tsitsipas discorreu um pouco quando chegou a sua vez de falar, reservando a derradeira descrição para o mais celestial dos tenistas.

Não o viu muito no court, mas Roger Federer pareceu-lhe “estar bem” durante o quarto do tempo que assistiu do treino em que o suíço participou na véspera. Tsitsipas, como tanta gente, fez questão de o presenciar “só para admirar a sua habilidade natural para beijar a bola com a raquete”, porque “é algo bonito”. Um jogador atolado de façanhas e recordes, personificador de como ver um tenista também pode ser uma experiência plástica, de maravilhamento para como a forma puxa o conteúdo ainda mais para os píncaros, ser assim elevado pelos seus pares, significa estarmos perante um legado que ainda nem conseguiremos bem qualificar.