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Nuno Amado

Nuno Amado

Professor universitário

Guardiola e a dupla herança de Cruyff (e um problema atual: continuamos a gostar mais de tocadores de realejo do que pianistas virtuosos)

No Dia Mundial do Livro, Nuno Amado recorre à autobiografia de Johan Cruyff (e não só), para explicar a relação entre o ex-treinador holandês com Pep Guardiola e todas as consequências futebolísticas dessa ligação (que também envolvem Busquets e Xavi): "Antes de ter tido a oportunidade de interiorizar as ideias do treinador holandês e de poder compreender os pressupostos colectivos do Dream Team de que fez parte, Guardiola encarnou, enquanto epítome da afronta subjacente a essa maneira tão radical de jogar futebol, o estilo de jogo proposto por Cruyff"

Nuno Amado

Tom Jenkins

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A ligação entre Johan Cruyff e Pep Guardiola é óbvia para toda a gente, e quem quer que conheça o mínimo de História do Futebol sabe que os fundamentos das equipas orientadas pelo treinador catalão são uma herança das ideias do holandês. É no entanto importante observar que Cruyff não foi apenas um mestre, e que Guardiola lhe deve mais do que uma ideia de jogo revolucionária. É bem provável que o mundo nem sequer soubesse hoje quem é Guardiola, se não fosse Cruyff.

Quando o holandês assumiu o cargo de treinador dos catalães, como o explica na sua autobiografia, os dirigentes do Barcelona queriam livrar-se de Guardiola porque o consideravam “um pau de virar tripas que não sabia defender, que não tinha força e que não conseguia fazer nada no ar”. Ao contrário desses dirigentes, que julgavam o jovem Guardiola por tudo aquilo em que não era bom, Cruyff acreditava que tudo isso eram coisas que poderia aprender a fazer bem. E o que todas essas pessoas, toldadas pelo preconceito, não conseguiam ver, era que Guardiola “tinha as qualidades fundamentais que são precisas ao mais alto nível: rapidez de acções, técnica, visão”.

A carreira profissional de Guardiola, primeiro como jogador e depois como treinador, é em larga medida um reflexo da observação acertadíssima de Cruyff. O futebol que lhe saía das botas, e o futebol que idealiza e que os seus jogadores agora põem em prática, é pelo menos em parte uma consequência da ideia de que, em futebol, os atributos intelectuais são mais relevantes do que os atributos atléticos. Sem Cruyff, Guardiola não só não tinha sido o jogador fenomenal que foi como não teria aprendido que o futebol se joga acima de tudo com o cérebro.

Não é preciso recuar ao final da década de 80 do século passado para termos um vislumbre do tipo de pensamento retrógrado que Cruyff decidiu contrariar ao fazer de Guardiola uma aposta pessoal. Ainda hoje, e não obstante tudo o que se passou de então para cá, o pensamento dominante é o de que, para jogar ao mais alto nível, é preciso arcaboiço. À excepção de um ou outro jogador, em quem se tolera a fraca compleição física e o passo vagaroso, os jogadores continuam a ser elogiados essencialmente pelos seus atributos atléticos. Mesmo aqueles treinadores que privilegiam um jogo mais pensado, e que exigem dos seus jogadores mais do que o compromisso de correr atrás dos adversários para onde for preciso e a habilidade suficiente para se superarem individualmente aos opositores, tendem a não abdicar de modo algum do tamanho, da velocidade, da combatividade, etc..

É quase unânime que um jogador franzino, mesmo que muito talentoso, precisa de trabalho de ginásio para jogar ao mais alto nível. Não nos iludamos: assim como Guardiola jamais chegaria à primeira equipa do Barcelona, se não fosse Johan Cruyff, dificilmente Sergio Busquets seria hoje conhecido se não fosse Pep Guardiola. Incapazes de verem nos seus jogadores mais do que a soma dos seus atributos atléticos, os treinadores continuam a ostracizar os mais inteligentes, os mais criativos, os mais talentosos. E depois, quando tentam replicar algumas das características das equipas de Guardiola, não percebem por que motivo ficam tão aquém do pretendido. Qualquer pessoa sabe que não se cruzam oceanos em barcos a remos.

LLUIS GENE

Nas equipas de Guardiola, a rapidez a agir, a excelência técnica, a visão de jogo, a capacidade de decisão em função das circunstâncias e a inteligência são absolutamente fundamentais. O facto de Guardiola ter sido um jogador cujas melhores características eram justamente essas, e sobretudo o facto de a sua carreira como futebolista só ter sido o que foi porque teve como treinador um homem que privilegiava justamente tais características, é determinante para entender o futebol que idealiza como treinador.

Ainda hoje há quem se refira àquela equipa do Barcelona de 2008 a 2012 como uma equipa de anões (chegou mesmo a ser a equipa com a média de alturas mais baixa em toda a Europa). E, no entanto, essa mesma equipa de anões é, para muitos, a melhor equipa da História. O Manchester City que se sagrou campeão inglês em 2017/2018, com um registo histórico de 100 pontos e uma série de outros records quebrados sem apelo nem agravo, era a equipa com a média de alturas mais baixa da Liga Inglesa (e a 11ª da Europa). É inegável a relação entre o estilo de jogo e o perfil de jogadores que Guardiola escolhe para formar o plantel. Não é que a morfologia do atleta seja critério. Mas os jogadores que lhe interessam, por razões que têm sobretudo a ver com o desenvolvimento das habilidades que os caracterizam, são tendencialmente mais baixos. Privilegiar em todos os jogadores a agilidade, a rapidez de raciocínio e execução e a tomada de decisão implica desconsiderar outras características e, por conseguinte, o perfil morfológico onde elas mais vigorem. A baixa estatura das equipas de Guardiola é uma consequência do tipo de futebol que prefere.

Entre 2008 e 2012, o Barcelona de Guardiola não só deslumbrou toda a gente como destruiu um conjunto de pressupostos acerca do jogo tidos por verdadeiros desde sempre: o de que não se deve tentar sair a jogar quando o adversário pressiona alto; o de que se deve cruzar a bola para a área quando se chega à linha de fundo; o de que se deve aproveitar sempre o espaço em transição, etc.. Outro desses dogmas inabaláveis é o de que qualquer equipa de topo precisa de pelo menos alguns jogadores fisicamente fortes. Ora, Guardiola mostrou que quem pensa assim está errado. O futebol que as suas equipas praticam é tanto mais próximo daquilo que idealiza quanto mais criativos tiver em campo. Para jogar como pretende, de nada lhe servem jogadores velozes mas pouco perspicazes na hora de se desmarcarem, jogadores competentes nas alturas mas pouco dotados do ponto de vista técnico, ou jogadores muito fortes fisicamente, que deixam a pele em campo e não perdem um duelo individual, mas que são incapazes de tomar uma boa decisão com ou sem bola.

Para Guardiola, o futebol é um jogo de decisões, pelo que deve ser jogado por aqueles que melhor compreendem o jogo e por aqueles que melhores ferramentas tiverem para se adaptar ao lado atípico do jogo. Dada a variabilidade de situações imprevistas a que um jogador é sujeito numa partida de futebol, e dada a falta de espaço e a falta de tempo para determinar qual a melhor decisão a tomar a cada momento, a agilidade (física e mental) é absolutamente decisiva. Assim como o é a desenvoltura técnica, o conforto com a bola, a frieza mental, a autoconfiança, a imaginação, a criatividade. O talento, em futebol, é no fundo o nome que se dá ao conjunto destes atributos, quando expressos em campo.

IAN KINGTON

Foi isso que Cruyff viu em Guardiola: talento. Ao relativizar a importância de outros atributos, tidos como inegociáveis para a maioria dos entendidos na matéria, viu então o que mais ninguém via, nem podia ver. Do ponto de vista de Guardiola, a primeira dívida para com Cruyff é essa visão. Antes de ter tido a oportunidade de interiorizar as ideias do treinador holandês e de poder compreender os pressupostos colectivos do Dream Team de que fez parte, Guardiola encarnou, enquanto epítome da afronta subjacente a essa maneira tão radical de jogar futebol, o estilo de jogo proposto por Cruyff. Mais do que ter feito parte da revolução desencadeada por Cruyff, Guardiola foi essa revolução. Há uma relação directa entre o tipo de futebol que o holandês implementou em Barcelona e a decisão de fazer de Guardiola um dos pilares dessa equipa.

É por isso natural que, de todos os jogadores daquela equipa que vieram a ser treinadores (Ronald Koeman, Michael Laudrup, Eusebio Sacristán, etc.), Guardiola tenha sido o que melhor lhe seguiu as pisadas. Assim como me parece natural que o sucessor de Guardiola venha a ser Xavi Hernandez. De certo modo, Guardiola apreendeu por experiência própria, por força de lhe ter sido dada a oportunidade de jogar numa equipa que valorizava precisamente as suas principais características, o que os outros apenas puderam apreender por observação. Enquanto jogador, sentiu na própria pele que as competências estritamente atléticas de que carecia perdiam relevância se a equipa privilegiasse a posse e a circulação, se tivesse um jogo posicional perfeito, se pressionasse alto e defendesse em bloco, etc.. E, enquanto treinador, procurou recriar tudo isso, de modo a proteger aqueles que, como ele, não são particularmente fortes nem particularmente altos mas nos quais abunda a inteligência e a criatividade.

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Denis Doyle

O futebol de passe curto, de constante procura de espaços e de combinações e triangulações sistemáticas que as equipas de Guardiola praticam é em parte consequência do convívio com um treinador como Cruyff, com quem aprendeu a pensar sobre o jogo, mas é também consequência de se ter valorizado como jogador sob o comando desse mesmo treinador, numa equipa cujo estilo de jogo lhe permitia ir percebendo de que modo podia potenciar as suas melhores qualidades e de que modo podia disfarçar as suas principais debilidades. A herança de Cruyff é dupla: às ordens do holandês, Guardiola adquiriu ideias acerca de como se deve jogar futebol, mas aprendeu também a dar valor a um certo tipo de faculdades. É muito conhecida a seguinte afirmação de Guardiola sobre Cruyff: “Johan construiu a catedral, e cabe-nos a nós mantê-la”.

De acordo com o argumento deste texto, a catedral herdada por Guardiola tem dois lados igualmente relevantes. E não creio que, negligenciando um deles, se possa manter a catedral de pé. Guardiola é especial, em suma, porque é dos poucos treinadores que consegue perceber que o projecto de catedral de Cruyff só é exequível com um certo tipo de matéria prima. É por isso que dá tanta importância à inteligência, à imaginação, à capacidade técnica, ao talento puro, no fundo. E não há ninguém que tenha tanta coragem para apostar no talento, mesmo que as expensas de tudo o resto, como Guardiola.

Para infelicidade dos que gostam a sério do jogo, a maioria dos treinadores, mesmo aqueles nos quais se notam algumas boas ideias, continua a gostar mais de tocadores de realejo do que pianistas virtuosos. Resta-nos a consolação de saber que mesmo os mais bem sucedidos deles nunca virão a ser presenteados com um coro de 90 mil a felicitar a equipa poucos segundos apenas depois de um golo que a impedia de chegar à final da Liga dos Campeões (na segunda mão das meias-finais da edição de 2011/2012 da competição, o Chelsea empata a partida a dois já no período de descontos, acabando com a eliminatória, e os adeptos do Barcelona, ainda com os adversários a festejar o golo, começam a cantar “Oh le le... oh la la... ser del Barça es el millor que hi ha”, numa manifestação de apoio sem paralelo, dada a decepção que tinham acabado de sofrer), e três dias depois de a equipa ter também perdido o campeonato para o Real Madrid.