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Nuno Amado

Nuno Amado

Professor universitário

“Nummer 14”. Johan Cruyff foi, muito provavelmente, o homem que maior influência teve na evolução do jogo de futebol

Completam-se hoje quatro anos desde a morte de Johan Cruyff (1947-2016), ex-jogador e ex-treinador holandês que marcou a história do futebol mundial, como escreve Nuno Amado

Nuno Amado

STF

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De um modo geral, o mundo progride compassadamente. Há momentos, porém, em que, por um conjunto de factores nem sempre fáceis de explicar, o progresso é feito por esticões da responsabilidade de um único indivíduo. Em determinadas alturas, em circunstâncias especialmente favoráveis, aparece um homem que, a posteriori, nos parecia fadado para mudar o mundo. É assim que olhamos retrospectivamente para os legados de Galileu, Newton ou Napoleão, por exemplo. Mais do que os representantes máximos da espécie, vemo-los quase como criaturas semi-divinas, e tendemos a reservar-lhes na nossa imaginação o mesmo espaço que reservamos aos mitos. E, no entanto, será que esses homens geniais fariam hoje parte da memória colectiva se não fossem as circunstâncias favoráveis em que tiveram a oportunidade de viver e de se distinguir? Se o telescópio não tivesse sido inventado previamente, Galileu não teria feito as descobertas que fez em Março de 1610, as quais lhe granjearam a reputação pela qual é hoje conhecido. Se a peste negra que assolou o território britânico em 1666 não tivesse obrigado a fechar o Trinity College em Cambridge e Newton não passasse um ano em casa, o seu annus mirabilis provavelmente não teria ocorrido. Sem a Revolução Francesa, a instabilidade política subsequente, o advento da meritocracia e, no fundo, circunstâncias aparentemente tão irrelevantes como o cerco de Toulon, dificilmente o génio militar de Napoleão teria produzido as consequências avassaladoras que produziu.

Johan Cruyff foi, muito provavelmente, o homem que maior influência teve na evolução do jogo de futebol, tal como o conhecemos hoje. Mas, como qualquer homem genial, é filho das circunstâncias. Dificilmente teria sido o pensador original que revelou ser, capaz de influenciar tanta gente, se não tivesse tido a oportunidade de ser o treinador que foi, e dificilmente teria sido esse treinador se não tivesse tido antes a oportunidade de jogar sob as ordens de Rinus Michels (no Ajax, no Barcelona e na selecção holandesa) e não se tivesse transformado num determinado tipo de jogador por causa dessa oportunidade. E também não o seria se não tivesse podido dar os primeiros toques na bola nas ruas de Amesterdão, se a morte prematura do pai, quando tinha doze anos, não o tivesse transformado num jovem profundamente determinado e, sobretudo, se não tivesse crescido num meio social progressista e liberal e, por conseguinte, particularmente favorável ao florescimento dos espíritos livres. O génio de Cruyff, enquanto jogador, treinador ou pensador, é indissociável da liberdade de pensamento de que pôde usufruir por ter nascido naquela Holanda pós-guerra. A sua imaginação estiolaria em qualquer outro ambiente.

R. Powell

Quando se vê um jogo dos anos 70, mesmo uma final de um campeonato do Mundo ou uma final da Taça dos Campeões Europeus, jogos supostamente protagonizados pelos melhores do mundo na altura, depressa se percebe o quão diferente era o jogo. Uma das coisas mais extraordinárias, a meu ver, é o facto de ninguém, nem mesmo os jogadores mais virtuosos, terem competências técnicas suficientes para proteger a bola. É verdade que os melhores jogadores se desenvencilhavam dos adversários pelo drible, pela velocidade, pela força ou pela imaginação. E também é verdade que a qualidade do passe e de recepção faziam diferença. Mas não protegiam a bola, não tinham por hábito jogar com a expectativa de desarme do adversário e não faziam uso da pausa ou das simulações de corpo.

As competências técnicas de Cruyff, a velocidade pura e a rapidez com que executava, a qualidade assombrosa das suas recepções, a própria coordenação motora, a elegância de movimentos e a inteligência geral acerca do jogo não tinham paralelo, no início dos anos 70. E, ainda assim, raramente o víamos a fazer uma coisa que um jogador mediano hoje é capaz de fazer: proteger a bola de um opositor que se propõe a tirar-lha sem ter necessariamente de lhe vencer a oposição. E não o fazia porque, pura e simplesmente, ninguém o fazia naquela altura. Somos criaturas miméticas, e agimos em grande medida com base naquilo que os outros costumam fazer. A ideia de proteger a bola quando um adversário a tenta roubar era inconcebível. Ao longo do seu processo formativo, os jogadores ou eram incentivados a passar a bola antes da chegada do adversário ou eram incentivados a fintá-lo. Não eram incentivados a preservar a bola, nem a conduzi-la à distância desse adversário, nem a colocar o próprio corpo entre o defesa e a bola, e não aprendiam, por si próprios ou por ensinamento alheio, a jogar com a expectativa de desarme ou com o movimento corporal do defesa. Este simples pormenor fazia com que o jogo fosse completamente distinto.

No início da década de 70 do século passado, o melhor do mundo não tinha ao seu dispor metade dos recursos de que hoje dispõe qualquer jogador mediano. E isso fazia com que, muitas vezes, Cruyff tomasse decisões precipitadas ou se desfizesse da bola em condições desfavoráveis. E era o melhor do mundo na altura, e provavelmente o jogador mais inteligente que até então já tinha pisado um relvado. Não é difícil imaginar as implicações disto na qualidade geral do jogo.

Parte do génio de Cruyff explica-se, a meu ver, por isto. Teve consciência dessa limitação desde muito cedo, e terá evoluído de modo a contrariá-la o melhor possível. Nos anos áureos do Ajax, Cruyff era sobretudo um avançado tecnicamente dotado e muito veloz. Ainda que de fino recorte, o seu futebol não era especialmente elaborado. Definia bem, executava melhor do que os outros, era muito irreverente, estonteante, etc. Mas não era cerebral. A sua inteligência foi-se desenvolvendo ao longo da sua carreira, à medida que ia procurando soluções para os mais diversos problemas e à medida que sentia que os seus atributos não lhe eram suficientes. O mais célebre dos seus recursos técnicos, aquele movimento que consistia em fingir o cruzamento e, passando a bola por trás do seu pé de apoio ao mesmo tempo que rodava sobre si mesmo, ganhar a linha ao opositor directo, foi a solução que encontrou, por exemplo, para resolver o problema específico de ficar encurralado junto à linha sem espaço de manobra, com um adversário nas costas e sem ninguém por perto a quem passar a bola.

A inspiração de Cruyff, de resto, era deste género. Olhava-se para ele e percebia-se que, a cada momento, estava à procura de transpor os obstáculos que o jogo lhe colocava. E então, num golpe de génio, intuindo rapidamente que a solução para o problema concreto que tinha diante de si não estava em replicar uma acção antiga, experimentava uma coisa nova.

Quando o senhor Jack Taylor deu início à final do Campeonato do Mundo de 1974 e Cruyff sentiu que Berti Vogts, o defesa alemão destacado para acompanhá-lo por todo o campo, não lhe iria dar espaço para receber a bola mais à frente, decidiu de imediato vir buscar a bola à defesa. O que seguiu foi inusitado e brilhante. A dada altura, Cruyff é o jogador mais recuado da selecção holandesa, que troca a bola no meio campo alemão de modo a encontrar espaços de progressão, e recebe a bola de um colega. Apesar de não haver nenhum colega atrás de si, e de uma perda de bola poder ser fatal, Cruyff decide encarar Berti Vogts, acelera, trava e volta a acelerar, deixa-o ligeiramente para trás e, aproveitando o posicionamento dos seus colegas de equipa, que tinham levado os defesas e os médios alemães que os vigiavam para perto da sua área e para as faixas, invade as linhas do adversário, entra na grande área germânica, é rasteirado e ganha uma grande penalidade.

Os alemães ainda não tinham tocado na bola, e a Holanda já se adiantava no marcador. Intuindo em poucos instantes que a estratégia defensiva dos alemães poderia ser combatida se, contrariando todas as expectativas, baixasse no terreno e aproveitasse o espaço que os colegas lhe concediam, Cruyff deliberou levar a ideia de ‘Futebol Total’ ao extremo e experimentar algo não estaria nas suas cogitações antes do início da partida, e acabou por ter sucesso. É bem possível que essa seja a jogada do século. Ainda que, no final, os alemães tenham sido campeões do mundo, a forma personalizada com que os holandeses entraram em campo e a coragem com que assumiram a iniciativa da partida ficaram gravadas na memória colectiva. Cruyff perdeu essa final, mas estabeleceu aí a sua imortalidade.

Aquele número 14 a preto, contra um fundo laranja, é inolvidável. Esse número e essas cores, capazes por si só de fazer ressurgir na memória das pessoas aquele que os eternizou, simbolizam a prodigiosa imaginação de Johan Cruyff. E é essa imaginação, ou a relevância que ela tem num jogo como o futebol, que garantem a Cruyff o lugar de destaque que lhe coube. O que o holandês revelou, antes de mais nada enquanto jogador, foi que o futebol se joga mais com a cabeça do que com as pernas. É esse o seu maior legado. Tudo o que fez posteriormente, enquanto treinador e enquanto pensador, foi dar corpo a essa ideia excepcional e tornar mais clara essa verdade.

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Cruyff foi o primeiro jogador realmente imaginativo. Já havia jogadores potentes fisicamente, e jogadores muito habilidosos, mas nunca tinha existido um que tivesse desenvolvido tanto a imaginação. Enquanto os outros reagiam às incidências do jogo como tinham sido ensinados a reagir-lhes, ou como viam os outros a fazê-lo, Cruyff dava largas à imaginação e inovava. Antes dele, o futebol era um jogo de um determinado tipo; depois dele, passou a ser outra coisa. Ao mostrar que a imaginação era o atributo mais importante num jogador de futebol, não só se tornou na tão apetecível água de Hipocrene dos que vieram depois dele como lhes abriu os horizontes e lhes deixou ao dispor uma miríade de possibilidades imaginativas.

Todos os jogadores de futebol, como aliás todos os artistas, aprendem a sê-lo com os jogadores de futebol que houve antes deles, e que aproveitam para imitar. Antes de Cruyff, não havia jogadores imaginativos com os quais o holandês pudesse aprender, pelo que teve de ser ele, por si mesmo, a educar a sua imaginação. Essa educação contribuiu, desde logo, para o seu sucesso enquanto jogador (e mais tarde para o seu sucesso enquanto treinador), mas protagonizou também a mais decisiva revolução na História do Futebol, na medida em que fez dele o modelo a imitar daí em diante e na medida em transformou aquilo que até então era um desporto como tantos outros, de rigor e excelência predominantemente atlética, numa verdadeira forma de arte.

O número 14 que envergou no Ajax e na selecção holandesa é o epítome do espírito livre e sonhador, do criador que, não satisfeito com a realidade que lhe é dada a conhecer, e sobretudo com os limites que ela teima em impor-lhe, a transforma em obediência à sua imaginação, alargando-lhe as leis e as fronteiras para benefício próprio e dos demais. Devemos-lhe todos a liberdade que nos concedeu, na forma do que é hoje o futebol.

Nota: Este texto, com ligeiríssimas diferenças, foi originalmente publicado no número 0 (Janeiro – Março de 2018) da revista 90 Minutos.

  • A elegia de um devoto a Cruyff
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    Um dos maiores jogadores / treinadores / pensadores do futebol moderno perdeu o jogo da vida dele: o cancro no pulmão tirou-nos Johan Cruyff, 68 anos. O Expresso pediu ao scout e comentador de futebol Rui Malheiro que explicasse quem foi Cruyff. E pediu bem - veja porquê. Este texto foi originalmente publicado na edição de 24 de março de 2016 do Expresso Diário