Custou-lhe, tão atónito e incrédulo, articular acalmia de espírito para deitar palavras cá para fora, pudera, os olhos de Rui Oliveira tinham a opacidade de vidro molhado, ele demorou a compor-se para falar. Quando o fez, apanhou Iúri Leitão na curva da surpresa, o companheiro de prova a esticar um sorriso largo ainda a frase ia a um terço da reminiscência que trouxe para a reação ao ouro que tinham acabado de conquistar: “Parece que estava a ter um déjà-vu porque, há duas semanas, fizemos uma simulação no velódromo de Anadia, fizemos 200 voltas atrás da mota e as últimas 25 foram sozinhos, pensei que estava a fazer esse treino na pista, eu sabia ‘são duas voltas à morte’, depois era descansar um bocado, e depois mais duas.”
O esbugalhar no olhar de Rui em Paris, nos primeiros momentos em que tirou os óculos antes do capacete, estava azamboado, mas com uma boa zamboa, face à proeza sobre a qual ele e Iúri, ébrios em alegria, se alongaram em explicações e vénias, com revelações de coração escancarado e um hino nacional gritado mais do que entoado. Inocente ou levado pela euforia que lhe levantou a fervura, o medalhado dos gémeos Oliveira pôs no discurso da vitória um lugar que reflete uma intenção que sabe-se lá como congeminou o dinheiro que por sua vez reforça uma evidência cuja prova maior está nas medalhas de ouro conseguidas pelos portugueses no omnium e no madison.
No que foi dito pelos gloriosos ciclistas e descrito por escribas que narraram a sua epopeia, como o Pedro Barata que em Paris os presenciou a serem enormes, surgiu, aqui e ali, a referência a Sangalhos, uma terra que é vila longe do mar e da bicefalia urbana portuguesa. Há 15 anos, foi lá que carolas e apaixonados pelo ciclismo congeminaram forma de ser inaugurado um velódromo coberto, vindo de obras que requalificaram uma pista a céu aberto para a transformarem no Centro de Alto Rendimento com 16 quartos triplos, ginásio, gabinetes médicos, salas de reuniões e de conferências e um refeitório. E o Desporto, árvore de fruto que demora a poder ser colhida e deve ser regada com paciência, além de cuidada com visão de futuro, retribuiu, espantosamente para quem não deteta a ironia.
Só na primeira década contada desde que pediram a Alves Barbosa, mítico vencedor de três Voltas a Portugal, para com os seus então 77 anos fazer a gentileza de inaugurar, à pedalada, a pista de Sangalhos - e tratemos o velódromo pelo nome da terra -, houve 37 medalhas conquistadas em provas internacionais de ciclismo de pista. Várias outras se ganharam antes da prata de Iúri Leitão no omnium e o ouro dele e de Rui Oliveira no madison, modalidades de intrincadas regras, guiadas por uma ordem confusa para o olho destreinado. Por um lado, ainda bem, assim se ajuda a provar um ponto: até em veias desportivas com pouquíssimos praticantes é possível beneficiar daquilo que se semeia.
Não sei quantos haveria no ciclismo de pista em 2009, mas, para Iúri Leitão e Rui Oliveira terem podido treinar até à exaustão, visualizando numa pista de condições semelhantes o que fariam em Paris, um investimento de 12,2 milhões de euros foi feito para criar condições que, pelo menos nas infraestruturas, dessem chances aos portugueses de competirem com os melhores. Fala-se hoje em Sangalhos, repetir-se-á muito Sangalhos, porque houve um esforço infindável de quem anda no ciclismo e rara predisposição governativa para lhes fazer uma vontade: a Câmara Municipal da Anadia entrou com €2,8 milhões e 70% do dinheiro usado veio do Quadro de Referência Estratégico Nacional, o defunto QREN que geriu a implementação de fundos europeus até 2013.
Quis-se apostar, a árvore plantou-se, os frutos caíram dos ramos. Por momentos mais sereno no entusiasmo, acalmando as emoções que deveriam viver naquele momento como o ponteiro de um sismógrafo, Rui Oliveira apelou ao que os atletas portugueses estão quase condenados a suplicar: “Por favor, não olhem só para o ciclismo de pista daqui a quatro anos. Sigam-nos, apoiem-nos. A pista foi construída há pouco mais de 15 anos e vejam onde estamos agora. Se mostrámos o que conseguimos fazer com 14 anos de ciclismo de pista, imaginem o que podemos fazer com todos a apoiarem. Espero que nos ajudem mais e tenhamos mais apoio, às vezes isso falta. Que não se lembrem só daqui a quatro anos que existimos e só pensem em medalhas.”
Não deveria ser assim, sobretudo quando há provas, poucas, mas há, de que compensam, de facto, as raras apostas a sério no Desporto via investimento com vontade numa modalidade.
Antes do ciclismo de pista em Sangalhos, houve, por exemplo, o Centro de Alto Rendimento que fixou a base da canoagem nacional na pacatez de Montemor-o-Velho, outro lugar distante dos vortéx de Lisboa e Porto. Foi inaugurado em 2002, custou cerca de 27 milhões de euros e da autarquia local vieram quase dois terços do dinheiro usado para criar uma estrutura que todos os anos motiva a romaria de atletas e seleções estrangeiras para lá irem treinar. Desde o seu parto, Portugal colecionou centenas de medalhas internacionais, entre elas as 145 de Fernando Pimenta, o incrível expoente dos proveitos dessa aposta.
Mas isto acontece no país fértil em conversas de café e trocas de sabedoria de bolso que acham uma vergonha Portugal apenas vencer quatro medalhas nos Jogos Olímpicos, postas iluminadas de um vício em só olhar para o resultado sem querer atentar ao processo, ou pior, sem sequer o conhecerem, por isso empoleirados na falta de noção. Este é o mesmo país que alberga uma das poucas (a única?) capitais europeias que não dispõe de uma pista completa e coberta de atletismo, que investe 40€ no Desporto por habitante quando a média da UE está nos 113€ ou que dedicou apenas €10 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ao setor - ou seja, quase o mesmo que o Governo reservou, em 2009, à construção do velódromo de Sangalhos. O retrato do tradicional trato que por cá damos ao Desporto não se pinta com cores vivas.
Neste país onde há 14 Centros de Alto Rendimento também existem o velocista Pedro Pichardo, o canoísta Fernando Pimenta, os ciclistas Iúri e Rui, a judoca Patrícia Sampaio, medalhados em Paris ou noutros Jogos que clamaram, no apogeu das carreiras, com o mais simbólico dos penduricalhos ao pescoço, por mais apoios e atenção. A melhor ginasta portuguesa de sempre, Filipa Martins, ainda há três anos se queixava de que mal conseguia arrendar uma casa e comprar um carro só a viver da modalidade. Eles vivem em Portugal, que demorou “vinte e tal anos” a fazer um Primeiro-ministro revisitar a comitiva nuns Jogos Olímpicos, como lembrou Jorge Manuel Araújo, diretor-geral do Comité Olímpico de Portugal que na mesma Paris apareceu para fazer um balanço da participação portuguesa.
Lá esteve Luís Montenegro a confortar a mágoa de Pimenta, a fazer figas pelo ouro de Pichardo e a abraçar-se aos dourados ciclistas de pista, um líder governativo a querer aparecer nos momentos áureos de atletas, houvesse medalha ou não, dizendo muitas coisas nos intervalos em que falava aos jornalistas, uma das primeiras ditas na primeira intervenção escapou-se-lhe - “O desporto é uma política pública que este Governo privilegia” - de tal forma da realidade que não repetiu uma assunção sequer parecida a esta. Ao ser a cara e o decisor-maior de um executivo minoritário, poderá estar preso a um Orçamento de Estado feito pela anterior legislatura cheio de míngua para o Desporto, mais uma vez: foram apenas €50,3 milhões destinados ao setor.
Em matéria de dinheiros, esperam-se mundos e fundos de um Estado que deveria engordar a sua atenção palpável não só aos atletas de alto rendimento, como ao fomento da prática desportiva no geral, começando nas bases. Mas há vias que deveriam ser abertas, portanto estimuladas por quem governa, para empresas e privados também contribuírem, o chamado mecenato. Porque se tão pouco parece haver grandes vontades vindas daí, haverá que cortejá-las com incentivos ficais, por exemplo. Quanto maior for a estima pela plantação de árvores, mais e melhores frutos virão com a devida paciência.
O que se passou
Zona mista
“Espero que nos ajudem mais e tenhamos mais apoio, às vezes isso falta. Que não se lembrem só daqui a 4 anos que existimos e só pensem em medalhas.”
Palavrasde Rui Oliveira, o atónito e incrédulo Rui Oliveira, uma das caras do ouro no madison, quando caiu um pouco em si e lhe pediram para falar acerca da incrível vitória que conseguiu com Iúri Leitão no velódromo em Paris. Mais do que dirigentes apostados em contrariarem o que diz quem sente na pele os argilosos dias desporto de alto rendimento em Portugal, o melhor é escutarmos os atletas, que certamente sabem do que falam.
O que vem aí
Segunda-feira, 12
🎾 Arranca o Masters 1000 de Cincinnati, nos EUA (Sport TV).
⚽ A 1.ª jornada do campeonato encerrar com o Arouca-Vitória (20h15, Sport TV1)
Terça-feira, 13
🎾 Final do Masters 1000 de Montreal, no Canadá (00h30, Sport TV2).
⚽ O Fenerbahçe de José Mourinho defronta o Lille na segunda mão da 3.ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões (18h, Canal 11).
Quarta-feira, 14
⚽🏆 Joga-se a Supertaça Europeia entre o Real Madrid e a Atalanta (20h, Sport TV1).
🎾 Masters 1000 de Cincinnati.
Quinta-feira, 15
⚽ O SC Braga vai a Servette para a segunda mão da 3.ª pré-eliminatória da Liga Europa (19h30, Sport TV) e o Vitória recebe em Guimarães o Zurique na segunda mão da 3.ª pré-eliminatória da Liga Conferência (20h15, Sport TV1).
🎾 Masters 1000 de Cincinnati.
Sexta-feira, 16
⚽ Arranca a 2.ª jornada da I Liga com um Santa Clara-FC Porto (17h, Sport TV1) e um Gil Vicente-AVS (20h15, Sport TV1).
🎾 Masters 1000 de Cincinnati.
Sábado, 17
🚲 A Vuelta arranca do lado de cá na fronteira. A 1.ª etapa de uma das provas-rainha do ciclismo começa com um contrarrelógio individual em Oeiras, à beira-Tejo (a partir das 16h20, Eurosport).
⚽🏆 Dia para as meias-finais da Supertaça de Portugal feminina: Benfica- Damaiense (15h30, Canal 11) e Sporting-Racing Power (17h30, Canal 11).
⚽ Mais I Liga: Rio Ave-Farense (15h30, Sport TV2), Nacional-Sporting (18h, Sport TV1), Benfica-Casa Pia (20h30, BTV).
⚽🏆 Supertaça da Alemanha: Estugarda-Bayer Leverkusen (19h30, DAZN3).
🎾 Masters 1000 de Cincinnati.
Domingo, 18
🚲 A 2.ª etapa da Vuelta ainda é em Portugal: serão 194 quilómetros a ligarem Cascais a Ourém (a partir das 11h50, Eurosport).
🏍️ Moto GP: Grande Prémio da Áustria (13h, Sport TV).
⚽ I Liga: Moreirense-Arouca (15h30, Sport TV1), Vitória-Estoril Praia (18h, Sport TV1) e Boavista-SC Braga (20h30, Sport TV1).
🎾 Masters 1000 de Cincinnati.
Hoje deu-nos para isto
Era um senhor. A nossa teima humana de guardarmos os elogios para eulogias, de deixarmos passar o presente e termos de a ver com o tarde, faz o póstumo ser uma coletânea de coisas a dizer que não são sabidas pelos visados. José Manuel Constantino estava a lidar com uma doença prolongada fazia alguns anos e jamais abandonou a presidência do Comité Olímpico de Portugal, entidade máxima que cuida do projeto de quem luta, sacrifica e sofre para ir a uns Jogos. Com ele, foi-se ao Rio de Janeiro, a Tóquio e agora a Paris, estivesse ele mais ou menos debilitado, com maior ou menor força para dizer o que fosse necessário. E justo.
Sem nunca ter privado pessoalmente com José Manuel Constantino, a impressão que ma deixou era o de ser um homem justo nas palavras, nunca poupando no que estimasse que deveria dizer. Era respeitoso, empático, deveras simpático e sempre atencioso com quem o procurava em trabalho desta barricada do jornalismo, em que a vida muito se faz de falar, ouvir e perguntar. A sua disposição em dar respostas e explicar era constante.
Fez muito pelo olimpismo em Portugal e deu a cara pelos atletas, fossem eles já olímpicos ou estivessem em vias de o serem. No vocabulário de José Manuel Constantino não existiam meias-palavras, nem nevoeiro nas afirmações. Aventurando-me um pouco na bola de cristal, não imagino o antigo presidente do COP a emanar algo parecido ao que disse José Manuel Araújo, diretor-geral da entidade, este domingo, em Paris: “O que vem do Governo para que o COP distribua para o programa de preparação olímpica é, a nosso ver, suficiente.”
O pincel celestial quis levar José Manuel Constantino desta vida nesse mesmo dia, o do encerramento dos Jogos Olímpicos de Paris, uma coincidência poética, justa também, assim o homem que Everestes moveu pelo Desporto enquanto cá andou pôde assistir com as forças que lhe restavam a boa parte destes Jogos e a como os atletas portugueses se esfolaram e tudo deram por eles próprios e pelo país. Em março, o falecido presidente do COP deu uma entrevista à Tribuna na qual explanou o seu apanágio de racionalidade e bem-explicar. Uma das respostas que lá deixou serve de exemplo para o brutal contraste com as declarações feitas pelo representante da entidade que falou em Paris (e de lá para cá, duvido que tenha aparecido dinheiro caído do céu:
Uma das reformas que considera fundamental é a alteração da forma de financiamento do desporto. Qual o modelo que defende?
Eu costumo dar este exemplo: não é concebível o Estado português ter um orçamento para o desporto que é inferior à dotação que tem só a Federação Portuguesa de Futebol para gerir o futebol. Mérito do futebol, demérito das práticas governativas. Olhando para uma realidade que tem quase 70 entidades desportivas que gerem modalidades distintas, ter menos dinheiro do ponto de vista das políticas públicas centrais do que tem uma só federação para gerir a sua modalidade dá-nos conta da escala, mas, sobretudo, do desequilíbrio. O dinheiro tem de vir do Orçamento de Estado, por via de uma arrecadação de receitas que não tenha exclusivamente origem nos Jogos Sociais. Mas a par do reforço do financiamento público é necessária uma reforma da estrutura que o gere porque nós podemos ter mais dinheiro em cima do problema, mas não temos mecanismos de otimização do dinheiro que temos em cima do problema.
Desejo-lhe uma boa semana e a melhor das sortes a lidar com a ressaca dos Jogos Olímpicos, aqui entre nós não será pêra-doce. Muito obrigado por nos acompanhar aí desse lado e espero que tenha gostado da cobertura da Tribuna Expresso. Pode continuar a ler-nos no site, onde poderá seguir a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos também no Facebook, Instagram e no Twitter.
E escute também o podcast “No Princípio Era a Bola”, que na terça-feira tem novo episódio para analisar a jornada inaugural do campeonato, como sempre na companhia do Tomás da Cunha e do Rui Malheiro.
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