A história de Awer Mabil começou num campo de refugiados, mas não é exclusivamente sobre isso. Esse período da sua vida durou 10 anos, seguiram-se mais 10 na Austrália, país que escolheu como seu, e outros tantos pela Europa, com uma passagem por Portugal, em busca do sonho do futebol. Hoje, o atacante de 27 anos quer ser uma inspiração para todos aqueles que se revejam no seu percurso, que é muito mais que apenas um único rótulo.
"Tenho agora esse título de 'miúdo refugiado'. É mais para as manchetes, para as pessoas tentarem sentir pena de mim, mas nunca tentam compreender quem eu sou. Poucos diriam 'ele veio da Austrália para jogar na La Liga', dizem 'de refugiado para...'. Eu vivi no campo de refugiados. Eu nasci lá, estive lá até aos 10 anos quando me mudei para a Austrália. Vivi na Austrália durante 10 anos, por isso é metade de um lado e metade do outro. Quando se escolhe apenas um lado para uma manchete ou para fazer as pessoas sentirem-se mal, esquecem a minha outra metade. E eu quero estar lá para todos”, disse Mabil ao “The Guardian”.
Os pais nasceram no Sudão do Sul. O pai era soldado e acabou por morrer em combate na luta do país pela independência. Mabil já nasceu em Kakuma, num campo de refugiados no Quénia operado pelas Nações Unidas, onde passou a sua infância junto da mãe e dos irmãos. Foi também aí que nasceu o amor pelo futebol: de pés descalços, com galhos a marcar os limites das balizas e bolas improvisadas com sacos de plástico amassados.
Ao fim de uma década, a família conseguiu mudar-se para Adelaide, na Austrália. Mabil lembra-se da forma como sempre acreditou que ir para outro país seria a melhor coisa que lhes poderia acontecer, mas assim que chegou à sua nova cidade deparou-se com outras dificuldades. “A nossa cultura era sempre estarmos unidos. Eu vim para a Austrália, tinha uma casa e estava cercada. Sentia que não podia sair e dar-me com as pessoas da casa ao lado. Eu não falava a língua. Nos primeiros meses, detestei", disse ao jornal britânico.
Foi neste momento que o jogador se lembrou de uma das linguagens comuns que une o mundo inteiro: o futebol. Já equipado a rigor, assim conseguiu ultrapassar as dificuldades na comunicação enquanto aprendia a falar inglês.
Foram os treinos que chegaram para fazer um início de carreira de grande qualidade. Começou por jogar por várias equipas jovens da área, até se juntar aos semi-profissionais Campbelltown City. A estreia foi aos 16 anos, mas as boas exibições depressa o levaram até ao topo do futebol australiano, ao serviço do Adelaide United. Em 2015, voltou a fazer as malas e a enfrentar o desconhecido.
A Europa foi o terceiro grande desafio da sua vida, com uma primeira paragem na Dinamarca, onde jogou pelo Midtjylland. Os primeiros tempos foram uma luta por minutos de jogo, que resultou num empréstimo ao Esbjerg, do mesmo país, e depois ao Paços de Ferreira, em Portugal. Durante a época na liga portuguesa, jogou 30 partidas e marcou três golos.
Gualter Fatia
“Procurei algumas coisas sobre o Paços na internet; vi que é um clube que gosta de apostar em jovens e não foi muito difícil ficar convencido. Cheguei cá e rapidamente notei que Portugal é semelhante a África na forma como as pessoas agem. Toda a gente diz olá; se te perderes, todos ajudam. Gosto desse espírito. Mal cheguei, pensei para mim: ‘Isto é um bom país para viver’”, contou ao Mais Futebol em 2017.
Como sempre, por mais dificuldades que tenha encontrado inicialmente, Mabil encontrou uma forma de melhorar a situação. Em 2018, já de regresso ao Midtjylland, conseguiu o tão desejado lugar na equipa titular e foi chamado pela primeira vez à seleção australiana. Depois disso já venceu a taça e a liga dinamarquesa e jogou a Liga dos Campeões, até que esta época a sua vida voltou a mudar. Depois de um ano emprestado ao Kasimpasa, da Turquia, fez as malas e viajou para Espanha para jogar a La Liga pelo Cádiz.
Mas esta época é sobre mais do que isso. "Quando cheguei à Europa tinha sonhos para perseguir e a responsabilidade de encorajar outras crianças. Quero contar essa história, inspirar pessoas do meu país, o país da minha mãe, em todo o mundo: isso é mais importante do que ser rotulado com uma coisa. Há crianças na Austrália que eu quero inspirar, para lhes mostrar que há um caminho", continuou.
“O que importa é o que dar à próxima geração”
A Austrália chegou ao Mundial porque Awer Mabil não falhou na hora das grandes penalidades. Durante o play-off, um empate contra o Peru por 0-0 deixava tudo em aberto. Os jogadores tinham treinado os penáltis no treino anterior e Mabil tinha falhado aquele que seria o último da sessão, mas não permitiu que esse peso lhe ficasse em cima e pediu para repetir. Marcou no treino e marcou no jogo, depois viu o guarda-redes substituto Andrew Redmayne defender e conseguiram, assim, um lugar na competição.
Matt Roberts
"O nosso sonho é chegar aos 'quartos' ou aos ‘oitavos’: uma declaração poderosa para a nossa próxima geração. Não se trata apenas de vencer jogos, mas sim do impacto. Eu sei o impacto que teve em mim em Adelaide, ao ver o Mundial de 2006. Continua a rolar como uma bola de neve. Os objetivos não são só para nós. Como futebolista, tens uma janela tão curta a representar o teu país, para mim o que importa é o que dar à próxima geração. Todo o trabalho que faço agora é para os inspirar", concluiu.
O seu trabalho tem impacto dentro das quatro linhas, mas também do lado de fora. Para que consiga fazer a diferença na vida dos refugiados, Mabil e o seu irmão Bul criaram a fundação Barefoot to Boots. O trabalho acontece no campo onde nasceu e cresceu e o apoio surge em áreas como a educação, cuidados de saúde, igualdade de género e futebol.
"Quando eles veem um jovem alcançar o que o Awer fez, traz os seus sonhos para a realidade. É uma saída, é uma forma de avançar. Não se pode subestimar a sua importância. Ele é um jovem extraordinário. Ele tem a coragem de um leão e o coração de um anjo", disse Ian Smith, presidente da fundação e membro da direção do Adelaide United, à televisão australiana SBS.