O ‘velho’ Gasperini, finalmente, ganhou, mas continua a ser o mesmo tipo que desdenha esperar pelo erro e abriu o lábio a Maradona
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Tem 66 anos, nunca tinha conquistado títulos e sente-se o mesmo homem que era antes de vencer a Liga Europa. Frontal e sem filtros, Gian Piero Gasperini está na Atalanta desde 2016 a colecionar proezas e uma forma de jogar entusiasmante e arriscada. Assusta-se com jogadores que não querem trabalhar no duro e agora está numa situação em que tem “uma esposa, dois filhos e encontrou uma mulher belíssima”. Gasperini usou uma metáfora para descrever interesses que o tentam seduzir a sair de Bérgamo e do clube que há oito anos estima para ser o melhor projeto no futebol italiano
A tertúlia festiva em Dublin pintou-se à semelhança de tantas outras. Um de cada vez, os jogadores da Atalanta foram submissos, baixando a cabeça para receberem a medalha de vencedores da Liga Europa e seguirem viagem rumo ao púlpito montado no relvado. Quando todos já se encavalitavam na ansiedade, Berat Djimsiti, o albanês com braçadeira florescente, recebeu o troféu e deu corda às chuteiras. Foi ter com os restantes jogadores e quando as mãos dos outros capitães, Rafael Tolói e Marten de Roon, um brasileiro naturalizado italiano e um neerlandês que tem das personasmais cómicas nas redes sociais, já tocavam no caneco, libertou-se a celebração. Uns 61 anos depois, o pequeno clube de Bérgamo, vindo de Itália, conquistou um título e a festa acentuou-se também pela demora da espera.
Mas alguém faltava ali.
Um pouco à margem do amontoado de jogadores, a dar os seus pequenos pulos na relva, afastado alguns metros, estava o integralmente grisalho Gian Piero Gasperini. O cabelo branco, as rugas vincadas na cara, dão-lhe o semblante de avô que se mantém um pouco à margem. Queria dar o palco aos jogadores que, mal o notaram longe, apressaram-se a caçá-lo. Não tardou até o treinador ser engolido pela equipa e constar no centro do grupo a erguer a taça da Liga Europa, agora um ‘avô’ simpático e contente, com a medalha de vencedor pendurada ao pescoço a baixar a guarda do homem de feitio por vezes irascível, noutras ocasiões intempestivo, porém decidido a melhorar os seus jogadores enquanto renuncia à ideia de esperar pelo erro do adversário.
Gasperini recusou-se, de novo, a montar uma postura passiva em Dublin, onde reencenou o que a Atalanta é: uma equipa pressionante quase à maluca, com referências individuais que levam os jogadores a perseguirem as suas marcações a todo o campo, provocando ao máximo o desconforto nos jogadores que defrontam para lhes roubarem a bola rapidamente e depois, práticos e dispensadores de artifícios, tentarem chegar depressa à baliza dos outros. Ao intervalo, a urgência era notória.
Já venciam por dois golos que acabariam por ser os três de Ademola Lookman que derrotaram o invencível Bayer Leverkusen de Xabi Alonso. Mais do que perder, os alemães não jogaram porque não os deixaram. O hat-trick do nigeriano nascido em Londres, quiçá hoje o brilho maior de uma equipa de autor e sem estrelas, é uma prova de como Gasperini reciclou, no enésimo ato e à oitava época no clube, mais uma equipa sob alguns dogmas dos quais não abdica.
Um deles é a dureza dos seus treinos e o pavor que sente face aos jogadores que não gostam de suar. “Têm de sofrer. Os que não estão habituados a trabalhar no duro assustam-me”, disse, em 2020, ao “The Guardian”, ao defender que “se não correrem nos treinos, não vão correr no jogo”. Chegado a Itália com reputação de gostar de truques e baldrocas com bola, mas ser pouco dado ao trabalho, Lookman está feito um dínamo que nunca cessa de correr. Outro mantra, retirado da ‘Arte da Guerra’ de Sun Tzu e que Gasperini, em tempos, colou no balneário da Atalanta, está esparramado em cada jogo que a equipa faz: “‘Defender torna-te invencível, mas se queres ganhar, tens de atacar’. Isso resume o espírito e mentalidade que quero que a minha equipa tenha.”
Ao treinador faz confusão, muita, ver equipas na expetativa e a aguardarem pelo desespero alheio, não, Gian Piero Gasperini quer ação em vez de reação, prefere forçar o atabalhoamento alheio porque sente comichão só de imaginar fazer o contrário. “Nunca vou acreditar no conceito de esperar pelo erro do adversário”, já confessou o homem que é despertado a meio da noite por pensamentos táticos e guarda um bloco de notas, na mesa de cabeceira, para os apontar. A roldana na sua cabeça é incessante e os resultados não têm deixado de rolar por consequência.
James Gill - Danehouse
A Liga Europa agora conquistada é o corolário de oito temporadas de sucesso contínuo na Atalanta, até então um clube iô-iô, envolto em despromoções e regressos constantes: entretanto, terminaram cinco vezes no top-5 da Série A, incluindo dois terceiros lugares (seguem em 5.º nesta edição do campeonato), foram a três finais da Taça de Itália e estiveram nos ‘quartos’ da Liga dos Campeões decidida em Lisboa, em 2020. Nesse ano, bateram o recorde goleador do campeonato italiano do século XXI com as 98 vezes em que fizeram um guarda-redes contrário ir buscar uma bola à sua baliza. Nenhuma equipa italiana tinha tamanha fartura de golos desde 1952.
Fomentou essa produção na humilde Atalanta, clube assente na reputação de possuir uma das melhores escolas de formação em Itália se bem que tímido na construção de equipas devido às amarras do dinheiro. Não é um problema, pelo menos tão opressor, desde que contratou a companhia de Gasperini. Cirúrgico a comprar jogadores com as características que pretende, é mestre a evoluir nomes banais para ostentarem, em campo, o máximo do seu potencial. “Torna bons os futebolistas que praticamente não tinham nome”, explicou, ao “El País”, o espanhol Chico Flores, confirmando esse toque de treinador com o seu próprio relativo anonimato enquanto jogador, em 2010, quando trocou o Almería pelo Génova de Gasperini. Antes, o conterrâneo Alberto Zapater pôde experimentar o irresoluto caráter do técnico, pouco dado a debater com quem ouse sugerir outra forma de fazer as coisas.
O médio que trocaria a cidade da focaccia pelo Sporting, no verão desse ano, recordou ao mesmo jornal a rigidez de Gasperini. “Vias que tinha super controlado tudo o que queria, como o queria e a forma em que o passava ao jogador. Havia uma série de indicações que tinhas de cumprir à letra. Caso contrário, é uma pessoa que se chateia muito”, contou, ao pintar o retrato de um general no treino: “Não havia lugar a debate, o que dizia era missa. Só a sua presença impunha respeito.” A jovial postura do homem de cabelo branco, sorridente na final da Liga Europa, é um contraste absoluto com a figura que desenham dele enquanto trabalha as suas equipas.
O retrato de um Gian Piero Gasperini confrontacional, pouco aberto a mover os seus ideais e métodos, causou um natural fastio, em 2011, quando aterrou no Inter de Milão cheio de jogadores feitos, acabados de tudo vencer com José Mourinho. As picardias sucederam-se, houve faíscas com estrelas no balneário, o seu temperamento não foi bem recebido. Durou cinco jogos no então campeão de Itália, mancha na imagem de qualquer técnico, ainda mais quando, na temporada seguinte, optou por rumar ao Palermo onde um espirro era suficiente para Mauricio Zamparini, o presidente, despedir treinadores - e aconteceu.
Após um regresso ao Génova para novo brilharete, com qualificação europeia, chegou à Atalanta em 2016.
Harry Murphy/Offside
De Bérgamo para o mundo, por lá tem puxado o lustro às suas variações de sistemas táticos assentes sempre na tripla de centrais, preferência nutrida por Gasperini há muito e bem antes de a defesa a três dar a volta para virar moda novamente. Ao início, a peripécia conturbou-se, a Atalanta perdeu quatro dos primeiros cinco jogos com o treinador em 2016/17, mas Antonio Percassi, o presidente que envia pijamas de bebé do clube a todos os recém-nascidos na cidade, não pôs o dedo no gatilho rápido do despedimento. O 4.º lugar nessa Série A recompensou toda a gente e originou o cíclico despedaçar da equipa a que os bergamaschi se tiveram de habituar.
A fornada onde pontuavam os defesas Andrea Conti, Alessandro Bastoni e Gianluca Mancini, o médio Franck Kessié ou o todo-o-terreno Leonardo Spinazzola foram vendidos para outros clubes maiores em nome, obrigando o treinador a procurar novos jogadores para reinventar o que apresentava em campo. A geração seguinte, feita máquina goleadora, teve Cristian Romero, Josip Ilicic, Duvan Zapata ou ‘Papu’ Goméz na base do cativante futebol de passes curtos para manter a equipa junta, trocas posicionais constantes e centrais a correrem com a bola para dentro do meio-campo adversário. “Há muito arrojo nisto e por isso Gasperini transforma qualquer jogador em melhor do que aquilo que é”, elogiava o analista Rui Malheiro, em 2020, quando a Atalanta já encantava na Champions.
Desmembrada essa versão, o clube amealhou mais uns milhões de euros enquanto pouco gastou para se remodelar mais uma vez. Na atual Atalanta 3.0 ainda há Marten de Roon, que acompanha Gasperini no clube há oito anos a par do conterrâneo Hans Hateboer e do eterno Rafael Tolói. Eles ajudaram o treinador ao serem esteios da equipa que agora confia no brasileiro Éderson e no neerlandês Teun Koopmeiners, a parelha de intensos médios que joga atrás dos vertiginosos Gianluca Scamacca, Charles De Ketelaere e Ademola Lookman na atual equipa que é “tão difícil de entender taticamente” e fez dos treinos do Sporting, esta época, antes de a defrontar, “um bocadinho mais confusos”. Rúben Amorim confessou-o na altura: “É completamente aleatório o que vai acontecer, é difícil de perceber.”
Na confusão propositada e com essa aleatoriedade planeada por um homem que nunca conquistara títulos, a Atalanta ganhou ao campeão português, agora ao campeão alemão que não perdia há 51 jogos e, pelo meio, superou o Liverpool, então líder da Premier League. Finalmente, Gian Piero Gasperini venceu aos 66 anos, uma semana após perder mais uma final na carreira na Taça de Itália, contra a Juventus. “Não entendo onde querem chegar. Sinto-me tão bom treinador como me sentia esta tarde”, garantiu, com um encolher de ombros, na ressaca da conquista da Liga Europa.
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Ele não quer saber de rótulos, menos ainda de reputações.
Gasperini é o tipo que, ainda jogador e quando o estádio Diego Armando Maradona se chamava San Paolo, em tempos que o futebol deixava os seus estarem em campo com alianças e brincos, abriu o lábio ao argentino ao disputar a bola com um braço esticado. O diós teve de ser cosido ali mesmo, a vociferar impropérios contra a mãe do italiano. Então mais temperado, ao repórter que o informou dos adeptos napolitanos que o apupavam como “o Mike Tyson” por ter ousado tocar no génio, respondeu, conta o “The Athletic”, com um simples “não tenho tanta certeza disso”. Em 1989 não era tão impulsivo.
Este século, já na Atalanta, ripostou aos cânticos insultuosos dos adeptos da Fiorentina no Artemio Franchi, recinto da equipa roxa de Itália, ao pagar o desrespeito com amor semelhante, explicando o ato com transparência: “A minha mãe participou no esforço de guerra para dar liberdade de expressão a esses retardados que cantam ‘filho da p***. Nunca insultei ninguém, os filhos da p*** são eles. Isto é rude, grosseiro e um insulto sério.” Ao ser tão frontal, Gasperini amoleceu a pedra nos corações da maralha que o rebaixara. Na visita seguinte a Florença, foi presenteado com uma camisola pelos tiffosi da Fiorentina, na qual se lia, na parte de trás, “um de nós”. Dono do seu feitio vulcânico, a reação do treinador também veio do seu âmago: poucos anos antes, ainda no Palermo, perdeu a mãe e o pai numa questão de dias.
Também é capaz de ser brincalhão, em tempos riu-se com a hipótese de ter, por admissão própria, “talvez uma dupla personalidade”. Incandescente e permeável às emoções será de certeza - na quarta-feira, na decisão da Liga Europa, pareceu mandar calar o banco de Xabi Alonso, colocando o dedo à frente da boca a meio do jogo que as câmaras captaram. No final, mais calmo, revelou estar feliz, mas retratando-se num cenário como se tivesse “uma esposa, dois filhos” e acabasse de encontrar “uma mulher belíssima”.
Porque é cliché a vida provar que tudo de bom está condenado a terminar.
Há quem pretenda acabar com a história de Gian Piero Gasperini a estimar a hoje endinheirada Atalanta, prestes a finalizar as obras de renovação do seu estádio e refeita, pela terceira ou quarta vez em oito anos, como a equipa da moda em Itália. Fala-se no cortejo do Nápoles, cujo presidente Aurelio de Laurentiis, há uma década firmou no guardanapo de um restaurante o acordo para levar o treinador à cidade que tem o Vesúvio em pano de fundo. Seduzir Gasperini para longe de Bérgamo, agora que é um vencedor de títulos, mas o mesmo tipo de sempre, daria um vulcão ativo à terra em constante ebulição.