Futebol internacional

A magia negra das ‘remontadas’ com golos nos descontos do Bayer Leverkusen de Xabi Alonso que acabou com um recorde do Benfica de Eusébio

A magia negra das ‘remontadas’ com golos nos descontos do Bayer Leverkusen de Xabi Alonso que acabou com um recorde do Benfica de Eusébio
Anadolu

Desde 1965, quando o futebol era a preto e branco na TV, que não se via uma equipa ficar 48 jogos sem perder entre todas as competições. A proeza pertencia ao Benfica de Eusébio, Coluna, Simões e Torres, agora foi ultrapassada pela equipa sensação de 2024. Pela 17.ª vez esta época, o Bayer Leverkusen de Xabi Alonso marcou um golo nos descontos, evitou uma derrota contra a AS Roma e passou à final da Liga Europa. Há algo de inexplicável na crença até ao último minuto da equipa alemã, que já só tem quatro jogos por disputar esta temporada

A fama no Real Madrid vem de lá muito atrás, a sua origem é a catrefada de noites épicas feitas na Liga dos Campeões, palco predileto do clube onde a equipa sofrer um golo no Santiago Bernabéu, em certa medida, não é mais do que primeira peça de um golo marcado, aí começa a engrenagem de uma remontada a ser montada e isso viu-se, há dias, contra o Bayern de Munique. Foi a enésima vez dos merengues a sobreviverem a uma intempérie europeia e a prevalecerem à Real Madrid, acumulando tensão, ansiedade e nervosismo durante largos minutos e, mais fulcral, também uma farta dose de crença no possível que lhes permite avistar uma missão improvável e nela verem uma tarefa alcançável.

No Bernabéu, noventa minutos de futebol são muito longos, disse em tempos uma das suas lendas. A fé na transposição para a realidade da frase de Juanito, dita há quase 40 anos, perfez esta dinastia no futebol que é nunca dar como deitada ao tapete de relva qualquer equipa do Real composta pelos jogadores que lá esteja e seja qual for a época. Xabi Alonso viveu esta sensação de dentro para fora. Entre 2009 e 2014 o espanhol jogou no clube das remontadas épicas, experienciou algumas em campo e terá levado com ele algo que o ajudou a hoje se ter feito um alquimista deste Bayer Leverkusen, uma equipa que provocará nos adversários sensações parecidas, mesmo que incomparáveis face às diferenças de dimensão.

Pergunte-se aos jogadores da Roma que na quinta-feira, ao 82.º minuto do jogo da segunda mão das meias-finais da Liga Europa, venciam por 0-2 no estádio dos alemães, quiçá crentes de que iriam levar a eliminatória para prolongamento, por instantes esquecidos das energias ocultas que acompanham a equipa que enfrentavam, senão atentemos: ao 83.º minuto, o Bayer Leverkusen marcou não marcando, com um auto-golo de Mancini e, aos 90’+7, o embalado Josip Stanisic correu pela direita, fintou para dentro e rematou o 2-2. O destino dos alemães rumo à final da prova estava selado com o primeiro golo, mas foi o segundo a dar ordem de repetição à loucura especial vivida pela equipa desde o verão passado.

Pela 17.ª vez esta temporada, o Bayer Leverkusen parecia condenado à naturalidade do desporto e do futebol que é, às tantas, não ser o melhor num dado dia e perder. Mas marcou um golo nos descontos, o tempo de compensação que realmente é um período de tempo que não pára de compensar a equipa de Xabi Alonso, ainda invencível em 2023/24. “Um dia vai acabar, espero que não nos próximos jogos. Isso é futebol, estamos a lutar e a preparar-nos para que não aconteça, mas vamos aceitá-lo, claro”, disse o treinador com a serenidade de um monge, no final do jogo e após andar aos pulos no relvado, a dar murros no ar e a rasgar sorrisos enquanto abraçou os seus jogadores.

Quando a partida acabou e confirmado ficou o 2-2 com a Roma, vestiram t-shirts de comemoração do acesso à final da Liga Europa. Na cabeça de todos e de quem os via estaria outro louro conseguido pelo Bayer Leverkusen com este resultado.

O empate livrou o clube de se ficar por um número de jogos sem perder esta temporada, pecúlio que já seria incrível, mas os 49 a que ascendeu permitiu-lhe ultrapassar um recorde vindo dos tempos do futebol a preto e branco na televisão. O Bayer Leverkusen superou o Benfica dos golos de Eusébio e da respetiva orquestra na qual brilharam Mário Coluna, José Torres, António Simões ou José Augusto, que entre 1963 e 1965 estiveram 48 partidas seguidas imunes à derrota, entre todas as competições. “É absolutamente incrível”, resumiu Xabi Alonso, calmo perante a grandeza, ciente de que ainda restam quatro encontros ao Bayer Leverkusen esta época: “Estamos ansiosos por jogar duas finais na última semana da época. Vai ser um enorme desafio, mas estamos radiantes por termos esta oportunidade.”

O segredo poderá residir nessa calma emanada por um treinador especial se bem que novato, a viver a sua primeira temporada completa a liderar uma equipa sénior - chegou ao Bayer Leverkusen em outubro de 2022, já com a época anterior em andamento.

Os golos e as emoções nos descontos

Ao estilo de jogo ofensivo pujante e mandão, que faz os alemães plantarem-se com os 10 jogadores de campo à beira da área adversária com os três centrais a quase serem médios enquanto trocas posicionais constantes acontecem à sua frente, juntou, desde cedo, a aptidão para manter a compostura quando o relógio começa a apertar. Onde tantas equipas sentem a urgência, o Bayer mantém a calma. Logo à 4.ª jornada da Bundesliga, evitou uma derrota com o Bayern, em Munique, aos 93’; na jornada 27, já líderes embalados para o inédito título de campeões, deram a volta ao Hoffenheim com golos aos 88 e 91 minutos; na Taça da Alemanha, superaram o Estugarda, nos quartos de final, com o capitão Jonathan Tah a marcar aos 90’; nos ‘oitavos’ da Liga Europa, um golo de Patrick Schick aos 92’ salvou-os no Azerbaijão e outros dois do checo, aos 93’ e 98’, evitou outra derrota quando o Qarabag foi a Leverkusen para o jogo da 2.ª mão.

Uma das lições desta temporada é convencer as pessoas a não darem o Bayer como acabado e há mais exemplos, a fartura parece não ter fim: no campeonato, já com o título garantido, Stanisic foi o herói em Dortmund ao empatar a visita ao Borussia, finalista da Champions, aos 90’+7, e na partida seguinte seria um espetacular remate de Robert Andrich a resgatar a equipa aos 90’+6. Ninguém esta época marca mais golos quando a urgência mais aperta e não há como treinar tal capacidade no campo, em exercícios, jogadas ou movimentações praticadas.

Ouvindo os jogadores do Leverkusen, outrora gozado na Alemanha com a alcunha de ‘Neverkusen’ por titubear nos momentos decisivos, há pistas que apontam para a calma que será aprimorada mentalmente, nos domínios que mais custam limar.

“Ninguém desiste, todos sabem que se sofrermos e estivermos a perder, vamos conseguir um golo”, garantiu Jeremy Frimpong, o neerlandês que habitualmente correr pela ala direita. “Não podem deixar de contar connosco, nem por um segundo”, avisou. O mais velho e experiente Granit Xhaka, que até já treina uma equipa das divisões secundárias da Alemanha nos tempos livres, alinhou um pouco no pensamento dito por Xabi Alonso. “Vês o desejo na equipa, não queríamos abrandar. Queríamos marcar o próximo golo para continuarmos invictos, 49 vezes seguidas”, disse no desfecho do empate com a Roma, ao falar da fome com que a equipa caçou mais um golo após marcar o primeiro que já garantiria a ida à final da Liga Europa, onde vão defrontar a Atalanta de Gian Piero Gasperini.

Será o penúltimo encontro da temporada, antes de o Bayer dividir a final da Taça da Alemanha com o Kaiserslautern, da segunda divisão do país. Antes, terá dois jogos no campeonato, o primeiro a providenciar um regresso ao passado que a equipa de Xabi Alonso esperará que seja somente no nome do adversário.

No domingo, o Leverkusen vai jogar em Bochum, no campo onde há quase um ano saboreou uma derrota oficial pela última vez, quando perdeu na derradeira jornada da Bundesliga em 2022/23. O reencontro será especial, seja qual for o resultado, como terá sido a partida amigável, na pré-época, frente à Real Sociedad tão de Xabi Alonso, que se formou no clube de San Sebastián e treinou a sua equipa B durante três épocas, entre 2019 e 2022, resistindo pelo meio a convites de clubes europeus, decidido a levar o seu tempo a maturar. Na prática, a derrota mais recente do Bayer Leverkusen aconteceu contra os bascos, em julho do ano passado, mas num jogo a feijões.

Outros registos e recordes

Aí não houve misticismo tardio a ser posto em prática, a alquimia de golos nos descontos ainda não despontara. Essa magia ficou reservada para encontros a doer, já lá vão então 49 sem derrotas esta época preenchidos com 40 vitórias, 136 golos marcados e 38 sofridos. Colocando em perspetiva, o Arsenal, líder da Premier League, encaixou 42, o Paris Saint-Germain vai com 47 e o Real Madrid nos 46 - entre os líderes dos big-5, os melhores campeonatos na Europa, só o Inter de Milão, com 28 golos sofridos, faz melhor no registo defensivo. Em Portugal, o Sporting já teve 48 bolas a entrarem na sua baliza.

Assegurado o cognome de campeão alemão, a mira do Bayer Leverkusen está fixada na conquista do triplete. Fazê-lo sem derrotas seria um feito inédito e celestial face à dificuldade de alcançar tal façanha no futebol.

Houve uma equipa a sussurrar ao ouvido dessa proeza. O Ajax de 1995, repleto de miúdos promissores a terem a sua erupção no futebol sob a batuta de Louis Van Gaal, conquistou o campeonato neerlandês e a Liga dos Campeões sem derrotas, mas teve a única derrota da temporada nos quartos de final da Taça (com a peculiaridade de a sua equipa B também ter perdido nessa fase de prova). Depois, há os grandiosos registos internos de várias equipas.

Em termos de campeonato, os incríveis 32 jogos sem perder do Bayer Leverkusen nesta temporada ainda perseguem, ao longe, o Arsenal de Arsène Wenger que entre maio de 2003 e outubro de 2004 esteve 49 partidas imune a derrotas na Premier League. Ficou conhecida como os “Invencibles” e será talvez a mais mediática equipa a colar a si um registo de invencibilidade que é ‘apenas’ o quarto melhor da história. À sua frente há os 58 jogos do AC Milan de Fabio Capello (maio de 1991 a março de 1993) e do prodigioso trio de holandeses que tinha em Van Basten, Gullit e Rijkaard, os 53 do Bayern de Munique de Pep Guardiola (de novembro de 2013 a março de 2014) e a série de 49 encontros da Juventus assente na solidez dos três centrais com Antonio Conte (entre maio de 2011 e outubro de 2012).

Fora da elite dos cinco campeonatos mais badalados, o mais extraordinário pertence ao Steaua de Bucareste que, entre 1986 e 1989, esteve 104 jogos sem perder na liga romena. O Lincoln de Gibraltar (88) e o Sheriff da Moldávia (63), já este século, completam o pódio da contagem que a UEFA cuida sobre as equipas mais avessas à derrota.

Nesta conversa relativa a campeonatos nacionais, a aventura da equipa de Xabi Alonso é, por enquanto, o 11.º melhor pecúlio da história das cinco principais ligas da Europa. Enquanto houver estrada para andar, as gentes do Bayer Leverkusen parecem querer continuar. Caso o jeito para desencantarem formas de gritaram “tor!” nos últimos minutos se mantiver, por mais inexplicáveis que sejam tais artes ocultas e magias negras do clube que equipa de preto, os alemães não parecem que se vão ficar por aqui.

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