Sim, outra vez. É verdade, o encontro teve mesmo este desfecho, novamente o desenlace de sempre. Quase eliminação, quase derrota, quase queda, de susto em susto até à vitória final. É como se o Real Madrid fosse um filme comercial de Hollywood: podem dar as voltas que quiserem aos guiões, colocar-lhes todos os efeitos especiais e truques imaginários, mas, no final, todos sabem como a coisa acaba. Os heróis ganham, os outros não.
Sim, outra vez. Quase a morrer, praticamente no abismo, afastados aos 88'. Só que, agora, o efeito especial foi novo. O herói nunca tinha feito, sequer, um golo na fase a eliminar da Liga dos Campeões. Nas duas últimas temporadas, jogou por dois clubes (Alavés e Espanyol) que desceram de divisão. Saiu do banco aos 81' e fez o primeiro remate aos 88'. 1-1. Fez o segundo aos 91'. 2-1.
Joselu chegou no início da temporada para substituir Karim Benzema. Um ponta-de-lança emprestado pelo Espanyol, da segunda divisão, para o lugar de um Bola de Ouro, um homem que tinha zero minutos disputados na Liga dos Campeões na vida para a vaga do quarto melhor marcador da história da competição.
Sim, outra vez. Mas com um efeito especial ainda mais deslumbrante. Quando é que o extraordinário deixará de espantar, à base de se repetir tanto?
Noventa minutos no Bernabéu são muito longos. Três também. O Bayern, depois do 2-2 de há uma semana, chegou ao 1-0 e, a partir daí, Tuchel mandou a equipa para trás. Fora Sané, fora Kane, vamos defender. Joselu empatou, Joselu selou a remontada. Dia 1 de junho, em Wembley, há final contra o Borussia Dortmund.
Na verdade, tudo isto é uma lenda que se auto-alimenta: o Real Madrid dá a volta porque acredita e acredita porque dá a volta a volta. O que nasceu primeiro, a crença de remontar ou as remontadas é que dão gás à crença?
Nova noite épica selou o Real Madrid-Bayern Munique, que é sempre uma cimeira de todos-poderosos da bola, um jogo em formato de sala de troféus, um choque de transatlânticos. Há 20 triunfos na competição somados entre estes dois clubes. Olhar para a bancada e ver Raúl ao lado de Kahn é como disputar um encontro com os olhos do passado em cima, ali, sempre atentos à continuação do legado.
Costuma-se dizer que quando as noites europeias começam quando ainda é de dia em Madrid, então é sinal de que a Liga dos Campeões está na sua fase decisiva. No entanto, Florentino Pérez criou um estádio do futuro, meio nave espacial, meio coliseu vindo do século XXV, meio campo de futebol, meio arena de produção de conteúdo, de espetáculo, de LED’s e demais artifícios tecnológicos.
Como resultado, o teto fechado do Bernabéu levou a partida para uma dimensão quase paralela: mergulha-se aqui e está-se num mundo alternativo, num universo só deste jogo, só destes titãs, como se para entrar fosse preciso mostrar o cartão de troféus, qual discoteca. Menores de seis Champions não passam.
Um dos primeiros a apresentar a sua candidatura a herdeiro de pesadas heranças foi Vinícius Júnior. O brasileiro passou boa parte da noite a criar uma sub-dimensão dentro da dimensão paralela do teto fechado do Santiago Bernabéu: um mundo de velocidade, drible e engano, jogando o jogo pelas suas regras, empurrando-o para o seu terreno.
O brasileiro pegou na bola e fintou, fintou, fintou, fez da noite de Kimmich um pesadelo, desequilibrou uma e outra vez, como um homem condenado a passar o serão a superar adversários rumo à baliza rival. Como prémio, o 1-1 começou nos seus pés.
Não obstante, rapidamente se percebeu que Vini tinha um grande opositor na luta de heróis. Aos 13', na primeira grande oportunidade do Real Madrid, o remate do número 7 foi desviado para a poste por Neuer, que também impediu a recarga de Rodrygo.
Se de um lado da dimensão paralela do Bernabéu havia a sub-dimensão de Vinícius, do outro havia a dimensão eterna de Neuer, o guarda-redes de 38 anos que pegou no tempo e devolveu-o a 2008: não estávamos em Madrid, estávamos no Dragão, quando um jovem alemão foi um muro para o FC Porto.
Passados 16 anos, a lenda alemã voltou a exibir o seu repertório de serenidade e reflexos, de defesas em que coloca o braço duro e rijo na bola, parecendo não somente defendê-la, mas esmagá-la, torturá-la para que não beije as redes.
E, assim, Neuer impediu os festejos de Rodrygo ou Vinícius. À passagem da hora do encontro, uma ação parecia que ia resumir a noite. Vini fintou da esquerda para dentro, assumindo responsabilidades, pegando no jogo pelos colarinhos, terminando a jogada com um remate forte, destinado ao golo. Neuer, travou o impossível com uma defesa que ainda não estava terminada e já era lendária. Haveria que esperar pelo deslize fatal.
Por entre os esforços dos brasileiros do Real Madrid, o Bayern apostava na magia de Musiala e no perigo de Kane. O jovem serviu Gnabry para a primeira ação de perigo do jogo, o inglês testou Lunin num par de momentos, mas o ucraniano esteve seguro.
O Bayern foi quase sempre gélido, fiel ao seu treinador, o enigmático Tuchel, ex-vanguardista do jogo de pressão e ataque, agora retranqueiro. Finalista da competição em 2020, com o PSG, e vencedor em 2021, com o Chelsea, esteve às portas da sua terceira final em quatro anos.
Aos 68', Kane lançou Alphonso Davies, o anunciado futuro reforço do Real Madrid. O menino que nasceu num campo de refugiados do Gana porque os pais fugiram da guerra civil da Libéria, imigrando para o Canadá com 4 anos, encheu-se de fé e encheu o pé direito. O 1-0 foi um grito de liberdade.
Só que a exultação não tocou ao Bayern. Pelo contrário, Tuchel prendeu a equipa, amarrou-a, condenou-a a uma prisão defensiva. Convidando o Real a atacar, convidou-o a fazer o que nenhum adversário dos blancos quer: que eles acreditem.
Bastou uma nesga para os de Madrid espreitarem, um pequeno buraco na muralha para invadirem o castelo. Aos 88', pela enésima vez, Vinícius tentou. Condução, drible, remate. Desta vez, a insistência teve prémio, com o único erro de Neuer em todo o jogo. Joselu, com o instinto dos matadores, empatou.
Ali já estávamos na zona Real Madrid. Já não era um jogo de futebol, era épica inevitável, uma epopeia inadiável, a gravidade do planeta de voltas trocadas e a empurrar o mundo para dentro da baliza do Bayern. Eles conseguem porque acreditam, acreditam porque conseguem.
Na sequência de um canto, Rudiger serviu Joselu para o 2-1. O golo foi ao VAR, mas a remontada já não era questão de futebol, mas de destino. Dez minutos antes, Joselu não sabia o que era marcar um golo na fase a eliminar da Champions. Um ano antes, Joselu não sabia o que era pisar a Champions, vivendo os dramas da descida. Agora, aqui está ele, decidindo cimeiras de gigantes como se, naqueles 180 segundos, Benzema e Raúl entrassem no seu corpo.
Sim, outra vez. É a sexta final para o Real Madrid nos últimos 10 anos. Ancelotti tentará a quinta Champions, Kroos, Modric, Nacho e Carvajal buscarão a sexta, marca que só tem Gento. Ex-Real Madrid, claro. Os blancos têm a Decimoquinta a uma final de distância.
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