Futebol internacional

A guerra no futebol alemão que tem interrompido muitos jogos com protestos (e maças, barras de chocolate ou carros telecomandados)

Seguranças retiram objetos que foram atirados para o relvado durante o Wolfsburg-Hoffenheim da Bundesliga
Seguranças retiram objetos que foram atirados para o relvado durante o Wolfsburg-Hoffenheim da Bundesliga
Cathrin Mueller/Getty

Os clubes da Bundesliga e da 2. Bundesliga votaram favoravelmente uma proposta para vender, a um investidor, 8% dos direitos comerciais das competições em troca de dinheiro para ajudar à “internacionalização e modernização” do futebol alemão. Mas os adeptos, que temem que isso abra a porta à entrada de capital externo nos emblemas, demonstraram a sua oposição ao negócio

A guerra no futebol alemão que tem interrompido muitos jogos com protestos (e maças, barras de chocolate ou carros telecomandados)

Pedro Barata

Jornalista

Quem tiver visto, recentemente, jogos da Bundesliga e da 2. Bundesliga já se habitou ao ritual: ao minuto 12 começam as manifestações dos adeptos, levando à interrupção das partidas. A fórmula consiste sempre em atirar objetos para o relvado, podendo estes ir desde bolas de ténis até maçãs, de barras de chocolate até notas, passando por apitos ou carros telecomandados.

O cenário apresentou-se, no escalão principal, no Bochum-Bayern, no Friburgo-Eintracht Frankfurt, no Mainz-Augsbrugo, no Wolfsburg-Borussia Dortmund, no Hoffenheim-Union Berlin, no Darmstadt-Estugarda ou no Bayer Leverkusen-Bayern; na segunda divisão, viu-se no Hansa Rostock-Hamburgo, no St. Pauli-Eintracht Braunschweig, no Paderborn-Kiel ou no Hannover-Fürth. A escolha do minuto 12 é uma referência simbólica ao número habitualmente associado aos adeptos.

Mas porquê? Qual a razão para esta revolta que une os diferentes estádios do fußball?

O motivo prende-se com a intenção de vender 8% dos direitos comerciais da Bundesliga e da 2. Bundesliga a uma private equity, um investidor externo que ficaria, durante 20 anos, detentor de partes dos direitos de televisão, comerciais e até, possivelmente, do naming das ligas. Segundo os responsáveis do futebol do país, o encaixe financeiro — que iria entre 900 milhões de euros e os mil milhões — serviria para ajudar à “internacionalização e modernização” do futebol alemão, mas o negócio gera apreensões e receios junto dos adeptos.

O sagrado ‘50+1’

A maior razão de protesto deve-se ao medo que esta venda seja o primeiro passo para terminar com a regra ‘50+1’, uma norma que se confunde com a essência do futebol na Alemanha.

O ‘50+1’ dita que os clubes e os seus sócios (não um investidor externo) devem sempre deter a maioria do capital e direitos de voto. Há as chamadas “exceções históricas”, dadas ao Bayer Leverkusen, financiado pela farmacêutica Bayer, e ao Wolfsburgo, da Volkswagen —o Hoffenheim deixou em 2023 de a ter.

Outro clube que foge, na prática, à lógica do ‘50+1’ é o RB Leipzig, financiado pela Red Bull. Para cumprir com os regulamentos, o Leipzig está dentro dos ‘50+1’, mas ser sócio da entidade é burocraticamente difícil e caro, pelo que os poucos membros são todos ligados à Red Bull, que detém o controlo efetivo das operações.

A natureza da propriedade dos clubes é um assunto muito discutido no país. Há quem argumente que bloquear a entrada de investidores externos limita a competitividade além-fronteiras, mas a generalidade dos adeptos continua a olhar para o ‘50+1’ como uma norma sagrada.

Em dezembro, 24 dos 36 clubes das duas principais divisões votaram a favor da proposta que permitia iniciar negociações para a tal venda dos 8% de direitos. Diversas plataformas de adeptos contestam, desde logo, a essência da votação, que se deu à porta fechada e sem se saber qual o sentido de voto de cada dirigente.

À “France 24”, Kristina Schroeder, da organização de adeptos Unsere Kurve, argumenta: “Que os clubes alemães sejam dos adeptos é algo que os torna especiais. Os adeptos têm de ser incluídos nas decisões, sobretudo nas que são importantes”. A dirigente pediu que a votação de dezembro “seja repetida”, com os votos de cada clube sendo públicos.

O histórico de reivindicações populares no futebol alemão é vasto. Nos primeiros anos do RB Leipzig na elite, era comum ver grandes cartazes contra a Red Bull e a autorização para que o clube competisse na Bundesliga; nas bancadas do país houve, também, alguns dos protestos mais vocais contra a realização do Mundial no Catar; foi, também, graças a estas queixas que o impopular horário de segunda-feira à noite deixou de ser utilizado para partidas da Bundesliga, em 2021.

As queixas dos adeptos tiveram uma primeira vitória quando a Blackstone, uma das empresas interessadas na compra, se retirou do processo. Neste momento, o único candidato conhecido é a CVC Capital Partners, que já investe na Ligue 1 e na La Liga.

Os argumentos da liga

O último relatório financeiro da UEFA indica que a Bundesliga é a terceira liga que mais dinheiro encaixa com a venda de direitos televisão, com €1.048 mil milhões em 2022, atrás da La Liga (€1.462 mil milhões) e da incontestada Premier League (€3.029 mil milhões). Na Alemanha, este valor é 13% menor do que o acordo que havia em 2019/20.

Os dirigentes da liga de clubes argumentam que este negócio permitiria aumentar as receitas televisivas, de marketing e, ainda, potenciar o mercado além-fronteiras. Vários clubes apontam ainda que um parceiro externo poderia trazer valioso conhecimento, que poderia ajudar a aumentar as receitas da Bundesliga e 2. Bundesliga.

A tensão entre a vontade de manter o poder dos adeptos e a tentação de recorrer a investimento externo tem marcado o debate num país que, apesar de ser a mais potente economia da União Europeu, vê os seus clubes sem terem o músculo financeiro que se verifica em Inglaterra ou mesmo nos gigantes de Espanha.

A liga quer ter o negócio fechado até ao final de março, a tempo das negociações para a venda dos direitos televisivos para o ciclo que se iniciará em 2025/26.

Os protestos têm, também, levantado outra questão: quando é que se deve suspender, e não apenas interromper, um jogo? Durante o Hertha-Hamburgo, da 2. Bundesliga, o desafio esteve 32 minutos parado até ser reatado. A federação alemã já se pronunciou, dizendo que “suspender deve ser um último recurso”.

Nos últimos dias, as posições de ambos os lados têm-se extremado. Na semana passada, os máximos responsáveis da liga convidaram várias associações de adeptos para uma reunião, mas estas rejeitaram o encontro, argumentando que se tratava de “uma armadilha”, pois “não havia vontade de negociar”.

Em resposta, Hans-Joachim Watzke, CEO do Borussia Dortmund presidente do conselho de supervisão da liga e conhecido apoiante do negócio com o investidor, alegou que “o diálogo é a base da cooperação democrática”, sublinhando que “ficou registada” a recusa. A guerra no futebol de um gigante europeu continua.

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