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Ana Bispo Ramires

Ana Bispo Ramires

Psicóloga de desporto e performance

Burnout: porque andamos todos “queimados” e infelizes?

No Dia Internacional da Saúde Mental, a psicóloga do desporto e performance Ana Bispo Ramires fala sobre burnout, em cujos índices internacionais Portugal surge como um dos primeiros países em termos de risco

Ana Bispo Ramires

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Nos últimos anos, o tema do “burnout” entrou muito rapidamente na vida e narrativa dos portugueses, mas nem sempre da forma mais adequada.

Considerando-o sob a perspetiva de “fenómeno laboral” (Organização Mundial de Saúde, 2022) e incluído na 11.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) como "uma síndrome conceptualizada como resultante de stress crónico no local de trabalho que não foi gerida com sucesso e caracterizada por três dimensões: 1) sentimentos de esgotamento ou exaustão de energia; 2) aumento da distância mental do trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados com o próprio trabalho; e 3) eficácia profissional reduzida”, tem captado um cada vez maior interesse por parte de investigadores e população em geral.

Encontramos, por isso, uma presença cada vez mais relevante nos “mídia” e nas redes sociais e, uma pesquisa rápida no motor de busca Google Scholar, devolve-nos cerca de 1 480 000 resultados (dos quais 38 400 em 2022), em menos de um segundo.

De testemunhos diretos, a formas de prevenção, sintomas a identificar precocemente, tratamentos cientificamente comprovados e “curas milagrosas” (infelizmente demasiado presentes nas redes sociais), encontramos de tudo um pouco.

Mas, se pensarmos na definição mais lata deste construto onde a exaustão energética (física e emocional), a dificuldade de conexão e envolvimento e a redução de produtividade podem assumir-se como denominadores mais comuns, podemos encontrar o burnout expresso em muitos outros contextos que não o profissional.

1.º lugar no top burnout e 56.ª posição na felicidade

Com tanta informação a circular (e bem) nos diferentes canais de informação, por que razão permanecemos a disputar o primeiro lugar dos países que evidenciam estar em maior risco de burnout?

E porque nos encontramos tão abaixo nos indicadores de “felicidade”? De facto, o último relatório mundial de felicidade das Nações Unidas (World Hapinness Report) coloca-nos num muito pouco honroso 56.º lugar entre 146 países.

Mas que “felicidade” é esta que teimamos em não alcançar?

Ora bem, o referido relatório suporta as suas conclusões na perceção que os indivíduos têm acerca de 6 dimensões, a saber: PIB per capita, apoio social, esperança de vida saudável, liberdade, generosidade e corrupção.

Segundo este mesmo relatório 30-40% das diferenças encontradas na perceção de felicidade entre as pessoas são explicadas pelas diferenças genéticas entre as mesmas, o que evidencia uma importante “fatia” de 60% a 70% de responsabilidade na interação que temos com o meio.

O que é verdadeiramente espantoso é que, conforme refere: “Outra descoberta chave é que a importância das influências genéticas não é estável desde o nascimento, mas pode mudar ao longo da vida e em resposta às condições ambientais atuais. Ao contrário das influências genéticas para a cor dos olhos e tipo de sangue, que são determinadas pelo ADN, as influências genéticas para traços complexos como o bem-estar não funcionam de forma determinista. Em vez disso, tornam um resultado particular mais (ou menos) provável.”

Ou seja… se tivermos uma predisposição genética para experienciarmos mais facilmente sensações de bem-estar e felicidade… nada nos garante que tal vá de facto suceder (sendo o inverso igualmente verdadeiro).

Curioso, certo?

Parece que a “forma” (ou seja, as competências que possuímos para…) de nos relacionarmos com o outro e com o meio é de facto importante.

Proatividade Vs Reatividade

Somos uma sociedade (enquanto indivíduos e organizações) que se identifica (como se de uma “pele” se tratasse) com o modelo da “ausência de saúde” e não com o modelo da “promoção da saúde”.

Ansiamos por “diagnósticos” (saltitando de especialidade médica em especialidade médica até encontrar uma que nos “convença”) para regular a nossa ansiedade (“Ah, afinal o meu diagnóstico é…”) e escolhemos demasiadas vezes ficar reféns dos mesmos ao invés de buscar soluções (entenda-se competências) para sairmos da condição que nos limita.

Na realidade, vivemos o “diagnóstico” como uma espécie de “libertação de responsabilidade” (“bem sabia que alguma coisa estava mal…”) que atiramos de bom grado para a equipa médica, o chefe, o colaborador, a organização ou a sociedade.

E depois aceitamos… aceitamos a condição de estarmos esgotados e infelizes ao invés de “sair do sofá” para inverter a situação de que nos queixamos.

Somos reativos – especialistas em encontrar a melhor “medicação”/médico/especialista que nos irá “salvar” – e muito pouco proativos na busca de estilos de vida que potenciem a vivência de estados de bem-estar e felicidade mais elevados, antes mesmo de qualquer forma de ameaça de doença se instalar.

Saúde mental e responsabilidade individual

Claro que precisamos de mais e melhor decisão política que proteja não só as condições de trabalho, mas também a fragilidade sócio-económica em que muitas pessoas/famílias se encontram. Claro que necessitamos de lideranças cada vez mais robustas do ponto de vista da competência emocional e com o arrojo de saber defender os seus colaboradores como o seu bem mais precioso…

Mas, e onde fica a responsabilidade individual de cada um de nós? De tantos outros que, não estando em condições de fragilidade socio-económica, ainda assim mantém comportamentos que agravam o risco?

De fazermos as melhores (as vezes, as mais desconfortáveis) escolhas que nos protejam da anestesia emocional, da segregação, do cinismo que muitas vezes (demasiadas) dirigimos ao outro? Que nos protejam da toxicidade que todos trazemos dentro quando escolhemos viver uma vida abaixo das nossas expectativas, levando-nos ao ressentimento e comprometendo a nossa capacidade de manter relações com o adequado calor afetivo com quem nos rodeia?

Recordo: o burnout também se caracteriza por exaustão física e emocional, pelo que, se escolhermos focar naquilo que de facto importa (apenas o que controlamos), que atividades (dentro e fora de horário de trabalho) temos mantido no sentido de promover a energia de que tanto precisamos?

A felicidade e o bem-estar não são um patamar que se alcança – são estados que vamos (ou não) experienciando numa “longa-metragem” que se chama “Vida” – logo, que ações temos mantido no nosso quotidiano para vitalizar diretamente pelo menos 4 das dimensões que a compõem (apoio social, esperança de vida saudável, liberdade, generosidade) e, indiretamente as restantes duas?

Contrariar a realidade em que nos encontramos passa por, inevitavelmente, desenvolver competências de autoconsciência e autoregulação, apostar em estilos de vida mais saudáveis que, necessariamente, nos impulsionam mais para o envolvimento connosco próprios e com o outro (a comunidade), potenciando a literacia emocional que tanto nos falta e nos ajuda a fazer as escolhas que nos direcionam para o projeto de vida que desejamos, ainda que, no imediato, nos possam trazer o desconforto e frustração (muitas vezes, as “dores de crescimento”) de que tanto insistimos em fugir.

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