Ángel Cappa, já retirado treinador de futebol argentino — foi adjunto de Menotti no Barcelona ou de Valdano no Real Madrid, por exemplo —, conta uma história da infância em Bahía Blanca, sua terra natal, nos anos 40 e 50. Recorda Cappa que, naquela altura, havia um jogador que batia todos os penáltis rematando de letra.
A justificação dada pela personagem transformada lenda das histórias do jogo que vão passando de geração em geração era que, num castigo máximo, o executante tinha uma vantagem demasiado grande. Assim, era necessário igualar as forças, nivelar o campo de jogo, e portanto a tentativa de golo era feita de letra, passando uma perna por detrás da outra, de rabona.
Aos 17' do Sporting - Boavista, muitas décadas passadas da data da história de Cappa e a um oceano e milhares de quilómetros de distância de Bahía Blanca, houve uma homenagem involuntária àquele herói. Um instante de arte, uma solução técnica utilizada para contornar outra limitação técnica, um engenho humano que não vem nos livros.
Na teoria, um jogador deve pegar bem na bola com ambos os pés. Mas, num mundo em que saber adaptar-se é conseguir sobreviver, há artimanhas que escapam ao óbvio. Tal como Daniil Medvedev chegou a líder do ranking mundial de ténis tendo um estilo que faria comichão aos puristas de algumas academias, também Nuno Santos sabe que as dificuldades que tem com o pé direito levam a que, por vezes, sacar de uma letra seja o melhor recurso.
Depois de uma arrancada de Edwards, a bola chegou ao canhoto em posição de finalizar de pé direito na área. Mas, socorrendo-se do tal engenho humano, da inventiva para encontrar soluções que ultrapassem as próprias limitações, o português rematou de letra para começar a escrever a vitória, por 3-0, do Sporting contra o Boavista. Foi o ponto alto de uma noite serena para a equipa de Rúben Amorim.
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Fiel ao que se veria depois, o Sporting entrou na partida levando à letra a mensagem de Rúben Amorim na antevisão da partida, começando com agressividade e dinamismo, sem tirar o pé do acelerador nem pensar na eliminatória contra o Arsenal. Os leões remataram seis vezes antes que o Boavista fizesse o seu primeiro disparo, somando muitas oportunidades de golo nos primeiros 20 minutos. Ao longo de todo o desafio, Franco Israel, em estreia na I Liga na baliza devido à lesão de Adán, não teve de fazer qualquer defesa.
Ainda a letra — foi mesmo a palavra da noite — do “Mundo sabe que” era entoada em Alvalade e já Chermiti tinha cabeceado à barra, num remate defendido por Bracali, o veterano de 41 anos da baliza do Boavista. Depois, foi Ricardo Esgaio a não conseguir dar a melhor sequência a uma assistência de Nuno Santos e novamente Chermiti a atirar ao lado, isolado por Marcus Edwards.
Com Ugarte a liderar o roubo de bola em zonas adiantadas, cabiam a Marcus Edwards as despesas do desequilíbrio. Aos 17’, o inglês das fintas curtas e mudanças de direção que desafiam a física levou a bola até Nuno, que desenhou a letra que santificou a sua exibição, num claro candidato a golo da I Liga 2022/23.
Em vantagem no marcador, o Sporting levou a partida para uma toada mais calma. O Boavista não se aproximava de Franco Israel, mas iria para o intervalo a perder por 2-0. Depois da letra de Santos, viria o momento dos pecadores.
Aos 43’, Ugarte mostrou como transformar um roubo de bola num início de contra-ataque, um roubo numa promessa de perigo para a baliza contrária. A transição do Sporting foi parar à esquerda, aos pés do Nuno da obra de arte de letra. Santos cruzou e Salvador Agra fez de pecador, com uma tentativa de corte em carrinho que acabou em auto-golo.
No começo do segundo tempo, um jogador tido até recentemente como pecador pelo público de Alvalade quis consolidar a sua passagem a santo, uma beatificação futebolística quando o Sporting mais necessitava. Ricardo Esgaio tem subido o nível desde a saída de Pedro Porro e, num movimento da direita para dentro, houve ares de Arjen Robben no remate que enviou à trave.
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O Sporting leva agora 15 triunfos seguidos nas receções ao Boavista. O encontro teve uma equipa de Petit ausente, tendo como máxima situação de perigo um lance, aos 62', em que Inácio perdeu a bola e se gerou alguma confusão na área. Ugarte, autor de uma exibição irrepreensível, evitou males maiores.
Aos 65', uma saída de pressão fantástica do Sporting, com a bola a ir de Israel para Diomandé, do costa-marfinense para Coates, do uruguaio para Esgaio, do português para Edwards e do inglês para Nuno Santos, viu o senhor do golo de letra a atirar por cima. A partir daí, os leões entraram em modo gestão, com Amorim a ir tirando protagonistas habituais como Pote, Edwards ou Ugarte.
A noite não acabaria sem que dois jogadores muitas vezes vistos como pecadores, mas que por vezes são santos inesperados, combinassem para o 3-0. Aos 93', Esgaio recebeu com precisão um passe longo de Tanlongo, que se quis juntar à festa das letras e fez um gesto técnico que leva o seu nome à letra. O lateral português cruzou para Paulinho finalizar para estabelecer o resultado final. Entre Santos e pecadores, com rabonas e algum desperdício que poderia ter levado a um triunfo mais expressivo, o Sporting chegou às quatro jornadas seguidas a vencer. Segue-se a viagem a Londres, para visitar o Arsenal, líder da Premier League.