Perfil

Crónica de Jogo

O quase é virtude, agonia e vício: Paulinho mostrou o céu ao Sporting, mas adiou o paraíso

Os leões empataram com o Arsenal na primeira mão dos oitavos de final da Liga Europa no Estádio de Alvalade. Paulinho fez um golo e ameaçou outro, que seria o 3-1, e lembrou-nos que o futebol é sempre sobre o que é e o que não é, sobre fantasia e variantes, esquentamentos de sangue que elogiam e admiram quem está à beira do precipício, perto da imortalidade ou da penúria

Hugo Tavares da Silva

MANUEL DE ALMEIDA

Partilhar

Os homens e as mulheres que tapam o que é desinteressante num estádio vazio sofreram uma alteração no mecanismo cardíaco quando Pedro Gonçalves apareceu subitamente numa posição prometedora. O médio que pensa como um avançado ganhou a correria contra Jorginho, um senhor que é um escândalo a tocar na bola, e enganou outro rival movendo-se para dentro. O remate saiu torto, torto como não é suposto sair a quem antes batia na baliza de qualquer maneira com uma fineza e frieza avassaladoras. A certeza de que se era gigante desapareceu. Mas as sensações eram boas.

Os primeiros minutos denunciaram que os portugueses queriam mais este jogo. Fábio Vieira era titular na equipa de Arteta, vestia a pele de Odegaard, o talento maior da equipa. O canhoto, que parece mais talhado para um futebol menos estruturado e rigoroso do que este geométrico Arsenal, era assobiado sempre que ia bater os cantos. Foi assim que foi parido o primeiro golo da noite: Vieira meteu na área, William Saliba marcou de cabeça. A tradicional cantoria para o francês, a tal que imita o ritmo de “tequila”, ouviu-se em Alvalade.

Antes disso já os gunners, por quem a bola se sentia mais seduzida, mostraram que por eles o ritmo era baixo, baixinho, sem muitos ais, nem muitos uis, dispensando algumas palpitações para as botas de Reiss Nelson, o herói do jogo com o Bournemouth, e Bukayo Saka. O controlo era total. Hidemasa Morita, Pedro Gonçalves e Paulinho tentavam entupir o miolo e controlar os centrocampistas que vão liderando a Premier League. O Sporting foi caindo perante a paciência e calculado esmorecimento alheio. O frasco da energia (que olha para a frente) estava lambido quase até ao fim. As testemunhas que por ali andavam abandonaram a euforia. Os avançados não tocavam na bola. Marcus Edwards, Paulinho (ganhou faltas, mas pouco ligava com os colegas) e Francisco Trincão estavam pouco em jogo, embora este último se ande a especializar em correrias maradonianas, uma situação muito satisfatória de observar.

O golo do empate também surgiu de canto, ainda na primeira parte. Gonçalo Inácio, um futebolista fino, chutou de longe e Matt Turner empurrou para canto. Segundos depois, Edwards meteu a bola na cabeça do jovem defesa, que a pouco mais de uma semana da primeira convocatória de Roberto Martínez deu mais um murro na mesa, e celebrou-se loucamente no estádio lisboeta. As pernas de Arteta, que às vezes pareciam esparguete, já haviam preparado o fado londrino, que foi somando alguns versos e erros capazes de mudar uma história inteira e improvável.

ANTÓNIO COTRIM

Trocaram-se alguns ataques, mas nada que fizesse os 36.006 saltar da cadeira. No início da segunda parte, sim, quando Zinchenko encontrou Martinelli na área. O brasileiro, com uma calma olímpica, picou a bola e tentou desviá-la de Antonio Adán, incerto aqui e ali com os pés esta noite. O espanhol defendeu e Alvalade celebrou como se fosse um golo. Fábio Vieira quase calou a festa a seguir. O português esteve perto do golo mais do que uma vez.

O Sporting sabia que tinha aqui a oportunidade de superar uma das melhores equipas da Europa, que ainda por cima está distraída com a corrida na Premier League. E isso notava-se no ritmo de alguns jogadores, a não ser que estejamos enganados e todos os fins de semana transmitam os jogos numa velocidade acima e mentirosa. Os leões, depois de alguns sustos e sustinhos (os defesas fizeram um jogo competente), descobriram o encanto pela coragem e arquitetaram algumas saídas rápidas, com algum protagonismo para Ricardo Esgaio.

E marcaram mais um golo. Edwards descobriu Pedro Gonçalves, com um sublime e impecável passe, e o guarda-redes do Arsenal voltou a bloquear a alegria do povo. Na recarga, o mal-amado e bem-amado e mal-amado, sabe-se lá, Paulinho encostou para a baliza deserta. Os braços das gentes de Alvalade tocaram no céu, agitaram-se cachecóis, houve abraços, risos rasgados e, pois claro, cantou-se a música que elogia a dentição do futebolista que é mal-amado, bem-amado e mal-amado, sabe-se lá.

O debate entre amores e desamores sofreu uma pancada desavinda quando, isoladíssimo, Paulinho chutou a bola por cima. Em desespero agarrou-se à cabeça. Quanta injustiça, terá pensado. Os adeptos, armados com tecidos que falam sobre amor eterno, lembraram-se de como dói não ser feliz. Era só a bola entrar… e entrou, logo a seguir, caprichosamente na baliza de Adán, depois de um infeliz desvio de Morita. Depois, após correria supersónica de Martinelli e de este ter superado toda a gente (até Adán!), Jeremiah St. Juste voou até lá e evitou chatices, cortando para canto. A multidão amou-o por isso.

MANUEL DE ALMEIDA

Seguiu-se a inevitável e aborrecida parada de substituições. Ousmane Diomande, Gabriel Magalhães, Emile Smith Rowe, Thomas Partey, Nuno Santos, Takehiro Tomiyasu, Youssef Chermiti (celebrado como deve ser sempre celebrado um jovem avançado com o sonho do golo nos olhos) e, bem mais tarde, Fatawu Issahaku saltaram para o relvado. O Arsenal, num ato hediondo que arrefeceu ainda mais a noite, voltou a abrandar o ritmo, não fosse Arteta um discípulo de Pep Guardiola, homens que não dormem sossegados perante imprevisibilidades ou aleatoriedades.

A história, por agora, ficou por aqui. O Arsenal, melhor mas não muito harmonioso, quis congelar o jogo durante demasiado tempo, poupando quem sabe as pernas para o que vem aí na Premier League. O Sporting entrou no relvado obedecendo à coragem, filha do sonho, e depois sucumbiu perante a qualidade e desinteresse que gritava do outro lado. A certa altura o campo ficou grande para os lisboetas, não havia armas para ir para a frente.

O tal 3-1 que Paulinho não meteu pode definir a eliminatória, é certo, mas lembra-nos que o futebol é sempre sobre o que é e o que não é, sobre fantasia e variantes, esquentamentos de sangue que elogiam e admiram quem está à beira do precipício, perto da imortalidade ou da penúria, sobre como o vemos e imaginamos, no fundo sobre o que pensamos, sentimos e explicamos e não sabemos explicar. Aquela vertigem do quase é assombrosa e viciante. Por isso mesmo, na próxima semana os mesmos olhos estarão à espera de qualquer coisa do Arsenal-Sporting em Londres. “Nós acreditamos em vocês”, cantavam as gentes para os futebolistas.