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Crónica de Jogo

Países Baixos - Equador. Quem não tem Gakpo, caça com Valencia

O Equador confirmou ser uma equipa para levar a sério, empatando (1-1) contra os Países Baixos. Gakpo marcou primeiro para a equipa de Van Gaal, mas a qualidade dos jovens dos sul-americanos voltou a encontrar expressão goleadora no veterano capitão Enner Valencia

Pedro Barata

Lars Baron/Getty

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Os Mundiais são uma ocasião tão especial que metamorfoseiam jogadores, dando-lhes capas para que voem como super-homens ou gerando medo cénico e pânico perante tantos olhos do planeta centrados nos mesmos pedaços de relva. Olhando ao primeiro grupo, que poderíamos intitular de clube Memo Ochoa, ele caracteriza-se por ter futebolistas que passam quatro anos perdidos entre a multidão de outros profissionais da bola espalhados pelo planeta para, num mês concreto, se transformarem em guardiões que tudo defendem ou avançados que nada falham.

Olhar para Enner Valencia no Catar é ver um homem jogar como se tivesse acabado de beber a poção de um druida da banda-desenhada. Não que o atacante do Fenerbahçe de Jorge Jesus não esteja habituado a destacar-se na Turquia, como antes o fizera no México, mas no Médio Oriente vemo-lo ser, ao mesmo tempo, referência ofensiva para receber a bola, aguentá-la e esperar por apoios e craque solidário que ajuda a defender; ídolo das bancadas, que o celebram, e treinador dentro de campo, orientando os movimentos de pressão dos colegas desta equipa com tanta juventude.

Ver Enner Valencia num Mundial é, sobretudo, ver golos. Em toda a sua história, o Equador marcou 13 vezes no principal torneio global. 6 desses golos foram apontados por Enner Valencia, que foi o único equatoriano a festejar no Brasil 2014 e é, até agora, o único a tê-lo feito no Catar 2022.

Nos últimos 7 jogos do Equador em Mundiais, só Enner Valencia marcou golos. O último homem da tri a colocar uma bola no fundo das redes na competição que não o atual capitão foi Iván Kaviedes, que chegou a passar pelo FC Porto, num Equador 3-0 Costa Rica a 15 de junho de 2016.

Um remate vitorioso do número 13 deu ao Equador o empate (1-1) contra os Países Baixos. Tendo em conta o triunfo (3-1) do Senegal contra o frágil Catar, são os sul-americanos e os europeus que vão para a última jornada do Grupo A em posição de seguir em frente. Os Países Baixos medem-se com os anfitriões na derradeira partida, o Equador defrontará os africanos necessitando só de um empate.

ALBERTO PIZZOLI/Getty

Depois da fácil vitória inaugural contra o Catar, Alfaro, o argentino que orienta o Equador, adaptou a sua equipa para tentar surpreender o general Van Gaal. Com três centrais — o ex-Boavista Porozo juntou-se à defesa —, o Equador entrou mais na expectativa, mas rapidamente demonstrou os argumentos que tem neste Mundial, com a juventude de Piero Hincapié, Moisés Caicedo ou Gonzalo Plata a prometer amanhã sorridentes para o país com nome da linha que divide em dois o nosso planeta.

O maior mérito do Equador talvez tenha sido saber repor-se à entrada em falso no jogo. Logo aos 6', Cody Gakpo aproveitou uma bola solta à entrada da área para disparar para o 1-0. Após ter aberto caminho para o triunfo neerlandês contra o Senegal, a estrela do PSV voltou a brilhar.

Os Países Baixos, que não há muito tinham Bergkamp, Van Nistelrooy ou Robin Van Persie como pontas-de-lança, têm hoje um leque de caçadores de felicidade bem mais modesto. Weghorst, Janssen e Luuk de Jong são úteis e altas referências ofensivas, mas que Van Gaal prefira ter os três no banco mostra bem que são mais solução de recurso que arma ofensiva de excelência. À falta dos cães para caçar de outrora, o técnico neerlandês tenta ir lá com Gakpo.

DeFodi Images/Getty

O início promissor dos europeus, com Frenkie de Jong liderando a orquestra, rapidamente se esfumou. O remate de Gakpo no 1-0 foi, aliás, o único que os neerlandeses fizeram enquadrado com a baliza rival em toda a partida.

A partir dos 20', o Equador libertou-se. Moisés Caicedo, o pulmão com pés de artista, passou a soltar-se no meio-campo. Enner Valencia fugiu duas vezes pela esquerda, mas o cruzamento que o capitão fez não encontrou o capitão na área para finalizar.

Perto do descanso, após belo livre de Estupiñan, um cabeceamento de Valencia não encontrou a direção da baliza porque Aké cortou. No último lance do primeiro tempo, o Equador bateu mesmo Andries Noppert, mas o golo foi anulado porque o árbitro considerou que Porozo, em posição irregular mas sem tocar na bola, interferiu na visão do guardião após o remate de Estupiñan.


Davids e Van Gaal no banco dos Países Baixos

Davids e Van Gaal no banco dos Países Baixos

Michael Steele/Getty

O recomeço seguiu o guião da etapa inicial. O Equador, cujo futebol tem tido um crescimento sustentado assente na boa prestação no Mundial sub-20 de 2019 ou no êxito do trabalho do Independiente del Valle, é uma bela conjugação de talento jovem e robustez física, sendo as pontas coladas por um capitão com atração fatal pelo golo.

Após De Ligt ter sofrido com Sarr contra o Senegal, Van Gaal optou por sentar o central do Bayern e lançar Timber. O jovem do Ajax não foi mais feliz e, aos 49', perdeu uma bola na zona média, lançando o contra-ataque do Equador. Noppert ainda defendeu um primeiro remate de Estupiñán, mas as bolas dos Mundiais têm atração por Enner Valencia. Lá foi ela ter com o avançado e capitão do Equador, que fez o 1-1.

No festejo, após uma roda em oração de toda a equipa, Valencia celebrou como se estivesse a apontar algo num caderno. Talvez estivesse a escrever que foram dele os últimos seis golos do Equador em Mundiais. Só Eusébio, em 1966, Paolo Rossi, em 1982, e Oleg Salenko, em 1994, conseguiram marcar meia-dúzia de golos seguidos pelo seu país. Caso aponte o próximo do Equador, Valencia fará algo inédito.

Nesta fase, os Países Baixos eram um triste conjunto. Davids e Van Gaal não escondiam a preocupação no campo e um Wesley Sneijder com o dobro do tamanho de quando brilhava com Mourinho tinha a mesma expressão nas bancadas. Aos 59', após Preciado bailar junto à linha, qual Garrincha, Gonzalo Plata atirou com estrondo à barra. Foi a última verdadeira ocasião de golo do desafio.

Em cima dos 90', Enner Valencia foi substituído com queixas no joelho, numa imagem já vista no jogo inaugural. Quando o atacante estava a sair em maca, as bancadas cantavam, em uníssono, “Enner! Enner!”. A história dos Mundiais é também a história dos que se transformam para os jogar, dos heróis locais que se tornam ícones globais, e por isso o equatoriano que monopoliza a quota goleadora do seu país é já parte dos livros de emoção do Catar 2022.