Não sabemos se Nicolas Almagro soltou aquela palavra por desabafo de derrota, grito de frustração ou pensada premonição. Mas, a 25 de maio de 2008, o tenista espanhol lançou frases que parecem vindas de alguém que foi visitar o futuro e de lá regressou para nos avisar do que sucederia.
Durante o embate dos quartos de final daquela edição de Roland-Garros, impotente perante o domínio de um adversário de 21 anos já tricampeão do major francês, Almagro reagiu a mais um ponto perdido com uma previsão que viraria icónica.
“Vai ganhar Roland-Garros 40 anos seguidos. Vai ter 65 anos e vai continuar a ganhar Roland-Garros.”
Avançando 15 voltas ao sol, um olhar aos registos de Nadal, que fará 37 anos a 3 de junho, dá razão a Almagro. Não na longevidade do domínio, mas na sua intensidade despótica. Rafa ganhou Roland-Garros 14 vezes, mais do dobro do segundo melhor tenista em Paris na era Open (Björn Borg, com seis triunfos); lá disputou 115 encontros e só perdeu três, frente a Soderling em 2009 e Djokovic em 2015 e 2021 (em 2016, abandonou o torneio depois das duas eliminatórias iniciais); em 367 sets, levou a melhor em 333.
A história de Roland-Garros, torneio emblemático e cheio de prestígio como poucos, com carradas de importância agarradas às suas 126 edições, confunde-se com a história de Rafa Nadal, o mais feliz dos homens e mulheres que por lá pegaram em raquetas. Mas, em 2023, o casamento mais constante do desporto mundial será interrompido.
O espanhol luta há muito contra lesões, numa batalha face aos limites do próprio corpo. Mas os problemas físicos nunca o afastaram de Paris, onde sempre voltava, mesmo vindo de meses difíceis, para se elevar na terra batida francesa, para se tornar monstro imbatível para quem o ousava desafiar no seu jardim de pó de tijolo. Só que, desta feita, não haverá recuperação mágica para reinar em Roland-Garros.
A lesão de segundo grau que sofreu no músculo psoas ilíaco do lado esquerdo, no Open da Austrália, tem-no fora dos courts desde 18 de janeiro. Na altura, previu-se uma baixa de seis a oito semanas, mas o problema não foi superado. O aguardado retorno para a temporada da superfície preferida de Rafa foi sendo adiado. Ausente sucessivamente de Barcelona, Madrid, Monte Carlo e Roma, a notícia mais impactante chegou agora.
Pela primeira vez desde 2004, o canhoto não estará em Roland-Garros. O casamento é interrompido entre as muitas dúvidas que, à beira dos 37 anos, o físico de Nadal deixa.
Nadal e o conhecido sabor do troféu dos mosqueteiros
Tim Clayton - Corbis/Getty
Assim, em 2023, na edição que se disputará de 22 de maio a 11 de junho, só a estátua de Nadal, três metros de altura feitos de aço perto do Jardin des Mousquetaires, estará no recinto onde se discute o segundo dos torneios mais importantes do calendário. A obra, inaugurada em 2021 e obra de Jordi Diez Fernández, será como uma lembrança permanente da presença ausente que marcará a quinzena parisiense, a constante que falha. Um vislumbre do que será o futuro quando o adeus assumir contornos definitivos.
A primeira das finais ganhas, em 2005, teve o argentino Mariano Puerta do lado derrotado. Um adolescente de braços descobertos recebeu a taça dos mosqueteiros das mãos de Zinedine Zidane, ídolo, como futebolista, do Real Madrid, clube da paixão de Nadal.
O domínio de Nadal ao longo do tempo mede-se, também, pela presença do Real Madrid como marca nos triunfos do espanhol. Quando Rafa ganhou o primeiro, ainda Zidane era jogador; quando ganhou o 14.º — mesmo número de Ligas dos Campeões do clube — já Zidane fora adjunto e técnico principal dos blancos e saíra, por duas vezes, do banco do Bernabéu. Em 2022, em Paris, Nadal ergueu a 14.º taça dos mosqueteiros e, também na capital, o Real Madrid tocou na 14.ª orejona.
Em 2005, a primeira taça dos mosqueteiros foi dada a Nadal por Zidane, então ídolo do Real Madrid como jogador
CHRISTOPHE SIMON/Getty
Depois do êxito em 2005, naquela terra batida que se tornaria marca indelével do seu percurso, seguiram-se três finais seguidas contra Roger Federer, no arranque de uma rivalidade que marcaria o ténis, o desporto e até a cultura popular. Ver o suíço do ténis de ourives e o espanhol feito parede que devolvia todas as bolas tornou-se ritual regular.
Em 2006, 2007 e 2008, Nadal bateu Federer na final de Roland-Garros, triunfo que se repetiria em 2011. No total, foram seis embates entre ambos no segundo major da temporada, todos vencidos pelo canhoto.
O único homem que bateu o balear mais do que uma vez no seu jardim de terra batida foi Novak Djokovic, triunfador em 2015 e 2021. No entanto, também o sérvio foi vergado à ditadura imposta pelo homem que celebrizou o “vamos!” quase como expressão de resiliência na sociedade espanhola: Rafa ganhou oito dos 10 confrontos entre os mais novos do famoso big three.
O mundo era bem diferente em 2004, última edição de Roland-Garros sem o homem a quem dedicaram uma estátua no complexo onde se joga o torneio. Talvez 2023 seja mesmo o começo de uma nova era, a abertura de uma nova etapa, o arranque de um ténis sem uma primavera que consagre Rafa Nadal. O que já não muda é o domínio, eternizado na estátua que por lá continuará.