Temperatura amena, sol a vingar-se das nuvens da véspera, domingo a convidar à invasão do maralhal de gente. O areal de Supertubos é apertado pela maré a encher durante a tarde, espremendo os corpos rumo à duna e forçando avisos de quem fala para os altifalantes da praia. O povo acorreu ao MEO Rip Curl Portugal Pro com as habituais preferências na bagagem, uma delas a incontornável que se reserva ao careca marítimo mais famoso que a humanidade já produziu. Cada vez que Kelly Slater desce a escadaria da estrutura da prova até à areia, ou sai do mar para a subir, irrompe uma gritaria na praia.
Os bruás coletivos repetem-se, o êxtase ao mínimo vislumbre do único surfista cinquentão do circuito é uma constante. O calvo do olho azul abana com a hostes como ninguém, mas perece nas voláteis ondas de Supertubos como nunca, como vivalma esperaria: entre o mar incaracterístico mar de sábado, cheio de correntes, espuma e massas de água a desmancharem-se mais do que quebrarem, e o já assustadoramente maior de domingo, Kelly Slater apanhou 12 ondas e surfou em três heats. Ganhou nenhum e foi o pior classificado em dois - ajudou a eliminar Frederico Morais pelo meio -, o último deles nesta tarde dominical.
Há muito que o 11 vezes campeão mundial parece dar as suas voltas de honra às ondas da Terra. Tem 51 anos, o mais recente título foi em 2011, colheu 56 vitórias em etapas (a última em Pipeline, em 2022) e por mais alquimista da saúde corporal que seja, a idade apanha o corpo de todos com as dores do tempo. Eliminado à segunda ronda em Peniche, o norte-americano ressurge na areia já vestido para uns cinco minutos com os jornalistas e perguntas a que ele habituado estará. Uma delas, a mais inevitável perante as circunstâncias.
Terá esta sido a última vez das últimas vezes?
“Não sei, não sei, pode ter sido a minha última vez aqui, para ser honesto. Vamos ver, talvez dependa um pouco dos Jogos Olímpicos, as pessoas que irão vão ficar decididas este ano... Portanto, sim, pode ser a minha última vez a surfar em Portugal”, admite, com a fala pausada e algum vazio no olhar, parecendo perder-se no background de quem lhe coloca uma pergunta. O 17.º lugar que levará de Portugal junta-se à mesma classificação obtida em Pipeline e o 9.º levado de Sunset, as duas etapas havaianas que arrancaram o circuito. Kelly Slater, o homem condecorado com o emoji de um bode e um acrónimo em inglês, está em risco de ficar na metade do ranking que perde a qualificação direta para o Champioship Tour (CT) da próxima época - com estes resultados, arrisca-se a não ser um dos 24 primeiros surfistas da hierarquia que, a meio da época, garantem o apuramento.

Damien Poullenot/World Surf League
Apesar das tantas voltas ao carrossel do surf e dos incontáveis feitos, este perigo de sumir da tabela preocupa-o. “Obviamente que todos temos de pensar nisso estando nesta posição. Tive dois maus resultados e um médio, não é a melhor posição para se estar, mas veremos o que acontece”, resume, quase conformado com uma prestação global que merece adjetivos que raramente lhe foram aplicáveis em três décadas de carreira. E ele, mesmo um torcedor de nariz ocasional às condições das ondas em Peniche, é dono de boas memórias criadas por cá.
Kelly Slater lembra-se, “claro”, de “ganhar contra o Jordy Smith” em 2010, na primeira edição da etapa como residente do circuito; ou de “ficar em 2.º contra o Adriano de Souza” e de “as ondas estarem perfeitas” no “grande ano” que foi o seguinte. “Mas, no geral e na maioria das edições, o estado em que Supertubos aparece e o que poderia ser são duas coisas muito diferentes, têm sido condições muito difíceis para nós, o ano passado tivemos muito azar com o vento de sul e esta semana também, durante alguns anos as condições não têm aparecido para nós, só em alguns momentos aqui e ali”, lamenta, no meio do cerco de câmaras e microfones.
Elogioso para com o calor que anualmente sente do “público português que tem sido incrível ao longo dos anos”, agradecendo às “tantas pessoas” a “gritarem” o seu nome e descrevendo-o como “avassalador”, Kelly Slater não desmanchou as dúvidas sobre um possível regresso a Portugal para competir. “Continuarei a vir para jogar golfe e fazer free surf”, garantiu apenas, lembrando a “relação próxima” que tem com António José Correia, antigo presidente da Câmara Municipal de Peniche, no cargo quando o evento se fixou em Supertubos.
A mira de Kelly, como já o admitiu este ano, parece estreitar-se cada vez mais nos Jogos Olímpicos, para onde a qualificação serão outro bico de obra. A prova será em Teahupo’o, no Taiti, longe da sede de Paris embora pertíssimo do âmago do norte-americano, por várias vezes domador da longe e tubular mandíbula da dita onda, umas das mais míticas do surf. A única certeza que deixou na breve conversa com os jornalistas portugueses ligou-se a esta hipótese:
“Se me qualificar para os Jogos Olímpicos, será o fim para mim.”