Pausada, a demorar o seu tempo e melódica, a voz de Peter ‘Joli’ Wilson é enganadora sem um mililitro de malícia. Quiçá por já ter perdido a conta aos sóis vividos a fechar um olho para o outro olhar através de uma câmara, fala com inesperada serenidade para quem, há dias, testemunhou uma tragédia. O australiano estava no alto do penhasco que se precipita sobre a Praia do Norte, na Nazaré, um titã rochoso a impor-se contra a chegada de gigantes aquáticos, quando Márcio Freire se pôs de pé no que lhe pareceu ser, “provavelmente, uma das maiores ondas dessa tarde”.
Peter recorda a interpretação que então lhe veio. Momentaneamente, ele há muito que está programado a pensar na perspetiva de lentes, diafragmas e obturadores, portanto a sua descrição partiu da sonolência da luz quando o brasileiro desceu a tal onda. “Estava muito bonita, já começava a ganhar aquele tom dourado. Não era uma onda zangada, era bonita de se ver”, retrata, ao telefone. O céu “estava limpo”, o cadente sol “brilhava”. E Márcio Freire foi engolido pelo lábio branco de uma mandíbula a fechar-se, “apanhado pela espuma no final da onda” enquanto a objetiva do australiano o acompanhava.
Ele viu e fotografou o esforço de Lucas Chumbo, outro brasileiro que pilotava um jet-ski, a socorrer e retirar o amigo do mar, rasgando-lhe o colete salva-vidas para urgentemente o tentar salvar com manobras de reanimação. Do momento em que Márcio Freire, de 47 anos, desapareceu na água branca, até os esforços socorristas pararem no areal, foi cerca de uma hora. “Quanto mais tempo passava, pensei que não haveria de ser um desfecho positivo”, lamenta Peter Wilson. Das 25 ou 30 pessoas que viu no mar nessa tarde em que “as ondas nem estavam muito grandes para a Nazaré”, apenas o brasileiro reconhecido pela proeza em enfrentar o indomável deixou lá a vida.
Foi a primeira pessoa a frenar-nos o espanto com um choque de realidade, uma enorme chapada de consciencialização do perigo que mantemos dormente com o nosso pasmo por façanhas corajosas, mas, assim como acelerar em corridas no alcatrão, escalar paredes sem corda ou saltar do topo de montanhas com pára-quedas, sempre existirá na Nazaré. Nos seus dias rabugentos e mal-humorados, a Praia do Norte não é lugar para humanos ganharem à natureza apesar de todas as vezes em que a enfrentam e fazem o possível, que é esquivarem-se dela com a adrenalina que só um vislumbre tão próximo do que pode ser o nosso fim dará.
Peter ‘Joli’ Wilson viu a tragédia de Márcio Freire mostrar o que nenhum peregrino que povoa o cume do farol do Forte S. Miguel de Arcanjo, esse olho rochoso sobre a Praia do Norte, se desloca para ver quando chega mais um dia de enormes ondas a banharem-na. Mas, conversando com ele, depreende-se a razão para a alcunha do australiano que visitou a Nazaré, pela primeira vez, em 1989, ainda a internet era palavra sabida por poucos, quanto mais a fama daquele lugar por ter ondas monstruosas: “jolly” é alegre em inglês e o fotógrafo, confesso adorador de Portugal que só não fica por cá mais tempo por o visto ter a validade de 90 dias, foca-se de novo na luz que se pode ver após a tragédia.
Tenta relativizá-la, porque “número de surfistas que a cada dia entram no mar em todo o mundo, face ao número de fatalidades que resultam desse surf, dá uma percentagem muito, muito pequena”. Peter Wilson já fotografou em Jaws, Teahupo’o ou Cloudbreak, ondas nada tímidas em tamanho no Havai, Taiti e nas Ilhas Fiji onde surfistas também brincam com a vida. Ele aponta-lhes a lente desde o raiar dos anos 70, antes dos 90 criou a própria empresa de banco de imagens e passar-lhe os olhos é passear num histórico acervo do surf - desde as vestes à ‘hippie’ dos primeiros surfistas, a um Kelly Slater adolescente - que agora conta com uma galeria dedicada a Márcio Freire. Ao momento “muito pesado de testemunhar”.



Estava na praia do Norte a semana passada, quando Márcio Freire caiu numa onda e morreu. O que conseguiu ver?
Sim, foi algo muito pesado de testemunhar. Tenho estado perto do oceano a fotografar durante grande parte da minha vida, já por várias vezes vi pessoas a serem socorridas do mar e, na maioria das vezes, o desfecho foi positivo. Pelo que estava a ver, pensei que quanto mais tempo estivessem em manobras de reanimação e a cuidar dele, não haveria de ser um resultado positivo. Foi muito desapontante e emocional quando me apercebi o que não o tinham conseguido reanimar. Desde o momento em caiu na onda até que efetivamente pararem de tentar reanimá-lo passou quase uma hora, foi ainda bastante tempo que estivemos ali sentados a observar à distância. Eu estava no topo do penhasco e tudo aconteceu no areal da praia do Norte, tinha a minha lente grande e uns binóculos, a minha mulher estava comigo. Todos vimos aquilo a acontecer enquanto esperávamos pelo melhor.
Quantas pessoas estiveram no mar nesse dia?
Umas 25 ou 30, havia muitas. Estava um dia bonito, as ondas nem estava muito grandes para a Nazaré, o sol brilhava e o céu estava limpo. A ondulação, de manhã, estava entre os três e os quatro metros e meio, mas à tarde cresceu uns dois metros, portanto as ondas ficaram maiores.
Como era a onda que o Márcio Freire apanhou?
Provavelmente foi uma das maiores dessa tarde. Tenho fotos da onda e era bastante bonita, já estávamos no final da tarde e, do meu ponto de vista enquanto fotógrafo, a luz estava muito bonita, já começava a ganhar aquele tom dourado. Não era uma onda zangada, era bonita de se ver. Basicamente, ele foi apanhado pela espuma no final da onda. As condições estavam bastante serenas e bonitas, não era um swell que parecesse perigoso ou feio.
Nesse dia ou nos seguintes, conseguiu falar com alguém que tivesse estado no mar quando tudo isto aconteceu?
Toda a gente estava chocada, a comunidade é muito próxima na Nazaré. Não falei diretamente com outros surfistas, mas estive com outros fotógrafos e pessoas que vivem aqui e sei que os ânimos estavam muito em baixo.
Vi que o Lucas Chumbo, surfista que estava num dos jet-skis e retirou o Márcio Freire da água, voltou a surfar na praia do Norte nos dias seguintes. Como é possível?
Bom, eles não surfaram no dia seguinte, quando o mar estava semelhante, mas ninguém entrou no mar. No sábado, só um par de pessoas lá estavam, no domingo as ondas estavam enormes e descontroladas, totalmente não-surfáveis. Depois, nesta segunda-feira, as pessoas demoraram a aparecer para surfar, ninguém realmente surgiu no line-up até por volta do meio-dia. E o surf foi bastante conservador, poucas pessoas forçaram e ninguém perseguiu grandes ondas.
Imagino que toda a gente ainda esteja a pensar no mesmo.
Sim, sim. Como disse, a comunidade de surf aqui é muito unida e pequena, todos se conhecem, é o mesmo nas comunidades de ondas gigantes, especialmente no tow-in [quando o surfista é puxado para a onda por uma moto de água] de todo o mundo. A camaradagem entre eles e a compreensão dos riscos que estão a tomar fá-lo tomarem conta uns dos outros. Estive em vários lugares onde já houve provas de ondas gigantes - O Tahiti, as Ilhas Fiji, no Havai -, sítios para onde as pessoas voam propositadamente para irem atrás de ondas grandes. A camaradagem entre surfistas faz com que estejam muito conscientes do que lhes pode acontecer no mar.
Na Nazaré, a morte do Márcio Freire não deixará um trauma entre quem participa ativamente na cena das ondas gigantes?
Acho que haverá um reconhecimento. Falei com algumas pessoas e disse-lhes: o número de surfistas que a cada dia entram no mar em todo o mundo, face ao número de fatalidades que resultam desse surf, dá uma percentagem muito, muito pequena. Até mesmo no mundo das ondas gigantes esse número é bastante pequeno. Já fotografo big wave surfing há 20 anos ou mais, são muitos para contar, e só consigo listar os nomes de poucas pessoas que tenham morrido a surfar ondas gigantes. Já surfam na Nazaré há mais de 10 anos e esta foi a primeira vez, sendo que a Nazaré é um dos lugares mais perigosos no mundo.