De vez em quando chamo aos meus artigos de opinião uma reflexão mais profunda sobre a relevância (ou não) da função de ‘comentador de arbitragem’, originalmente criada pela imprensa ao perceber, com mérito e perspicácia, a relevância comercial desse papel.
O caro leitor já reparou com certeza que atualmente há mais de uma dúzia de ‘analistas’ a colaborarem com a comunicação social. Como já reparou, sou um deles. A opção é uma alternativa profissional (tão legítima como qualquer outra) para quem termina a carreira e quer manter ligação àquilo que mais gosta.
Mas ao contrário do que possa pensar, esta não é uma ‘profissão’ recente. Este não é um cargo nascido há pouco tempo. Existe há décadas e já foi protagonizado por muitas outras pessoas, algumas bem conhecidas do nosso universo. Refiro-me, por exemplo, aos inesquecíveis Vítor Correia, Paulo Paraty, Cruz dos Santos, Carlos Arsénio e tantos outros.
O objetivo, para a opinião pública, foi sempre o mesmo: o de se saber qual o veredicto técnico sobre as decisões dos árbitros, em determinados jogos.
Infelizmente - e essa parece ser uma verdade incontornável nos dias que correm - a maioria das pessoas (adeptos, mas não só) não se preocupa muito em perceber a natureza da decisão ou em conhecer as leis que a fundamentaram. A maioria das pessoas não quer sequer saber o racional por detrás do penálti assinalado ou do golo anulado. O que a maioria das pessoas quer é saber se a opinião do ‘técnico’ coincide ou não com a sua. Se valida ou não a sua.
Se validar, é geralmente usada como arma de arremesso, reforçando velhinhos processos de vitimização, de perseguição e até de discriminação face a rivais desportivos. Se não validar, dá azo a um ataque direcionado ao ‘especialista’, com vários atores a dispararem em simultâneo, apenas para relativizar a sua análise e denegrir a sua idoneidade. A estratégia é materializada ao longo do tempo, de várias formas e com vários atores, qual exército amestrado ao serviço de força maior.
É um vale-tudo para retirar força e credibilidade a quem tem, por obrigação profissional, dizer o que sabe.
Nessa linha, há sempre dois tipos de perfis: os que dão a cara, geralmente mal-educados, que atacam com palavrões, ofensas e ameaças pessoais... e os acovardados, que mordem pela calada e, por entre palmadinhas nas costas, refugiam-se em discursos mordazes e refinados. Tenho pena dos primeiros. Tenho muita pena dos segundos.
É justo ressalvar que há uma minoria de gente com outra visão. Há quem realmente respeite a análise aos lances, mesmo que discordando. Há quem tenha essa elevação, a de não confundir interpretação técnica com integridade pessoal. Pessoas de bem, que sabem respeitar leitura contrária, que sabem encaixar uma visão que colide com a sua.
Como o caro leitor já percebeu, esta é uma função desgastante, porque estritamente ligada às emoções, sobretudo às mais exponenciadas.
Convém sublinhar que essa tendência terrena não é exclusiva aos comentadores de arbitragem. Vejam, por exemplo, a quantidade de treinadores comprovadamente competentes que acabam despedidos em função de resultados, sem terem tempo e espaço para solidificarem os processos de trabalho que o cargo exige. Pensem também no número de jogadores talentosos que são dispensados, porque não terem, a dado momento, o rendimento desportivo esperado.
Gratidão, competência e respeito não caminham de mãos dadas com a indústria. É um universo muito complexo, dominado pela intolerância e impaciência, pelo imediatismo.
É pena. No que me diz respeito - e foi essa a intenção ao abraçar este desafio - o verdadeiro papel do comentador de arbitragem, a sua utilidade maior, devia ser o de acrescentar valor. O especialista em arbitragem devia poder ir bem além da mera análise técnica dos lances.
O ideal seria que tivesse tempo e espaço para explicar as regras, para esclarecer o processo de decisão, para mostrar às pessoas que erro e acerto são inerências de uma função difícil, não ações premeditadas para prejudicar uns em detrimento de outros.
É por entender que isso é quase impossível numa imprensa hoje demasiado pressionada que lancei em tempos o Projeto Kickoff, onde proponho-me a fazer tudo isso, controlando os momentos, os temas e as explicações. Até aí, num espaço livre que é só meu, sinto que este é um mundo à parte.
Quem corre por gosto não cansa, é certo... mas é pena ver tanta coisa feia numa indústria que tem tudo para produzir apenas coisas boas.