Quando Saeed Kamalinia, um iraniano de Resht a viver em Chicago há 15 anos, comprou bilhetes para o Campeonato do Mundo só tinha em mente ver futebol. Depois, tudo mudou. O rastilho para o que aparenta ter algo de revolução no Irão foi a morte de Mahsa Amini, uma curda de 22 anos, às mãos da polícia da moralidade, que a havia detido antes por uso indevido do hijab. A viagem de Saeed e de outros transformou-se numa ação ativista, gritariam pela liberdade das mulheres e por outro país. De acordo com a Iran Human Rights, já morreram pelo menos 448 pessoas desde o início dos protestos anti-regime.
A estadia da seleção do Irão em Doha, no Catar, foi uma daquelas histórias que mistura futebol e política. O interesse maior estava na terceira jornada da fase de grupos, contra os Estados Unidos, que transportava os observadores para o Mundial de 1998, em França, quando houve hesitações e flores no pacífico duelo entre as duas nações. No passado, testemunharam-se intromissões políticas e um sequestro de 444 dias na embaixada norte-americana em Teerão. Os temores, neste 29 de novembro de 2022, acabaram derretidos por fotografias, danças e promessas de paz entre cidadãos dos dois países, quais solenes embaixadores, nas imediações do Estádio Al Thumama.
“Women. Life. Freedom”
Desta vez era diferente, eram iranianos contra iranianos. Os rumores espalhavam-se por Doha e nas salas dos jornalistas quase em surdina: haveria colaboradores do regime iraniano a controlar ou a perturbar aqueles que falavam para as televisões de todo o mundo sobre o que se estava a passar no Irão. A tensão foi escalando à medida que se jogavam as partidas agendadas no Grupo B.
Foi isso mesmo que sentiu na pele Saeed, a quem um dia lhe foi impedida a entrada no estádio por ter uma t-shirt negra a dizer “Women Life Freedom” [Mulheres Vida Liberdade, em português], que acabou por esconder como se fosse roupa interior, entrando de seguida nas bancadas. Poucos dias depois, tentando prestar auxílio a uma iraniana angustiada cujo marido havia sido detido, ele e a sua mulher tiveram de responder a várias perguntas, ficando retidos durante duas horas e meia. A um amigo do casal foi confiscada a t-shirt e fizeram-no assinar algo em árabe, um idioma que não dominava. “No último jogo usei uma t-shirt diferente, foi a que o Irão usou em 1978, quando jogámos contra Holanda, Peru e Escócia”, precisa. “Foi o último Mundial antes da Revolução da República Islâmica. Não usei a outra porque não me senti seguro, usei apenas uma tatoo temporária.”
Nas ruas, este engenheiro eletrotécnico também sentiu a tensão anunciada e mais ou menos dissimulada. “Nós vimos pessoas pró-regime a fazerem alguns vídeos”, conta Kamalinia. “Eu fui alertado para essa situação. Acho que a missão deles era mostrar que estava tudo normal. Talvez tenham tirado fotografias. Mesmo quando eu estava a falar com jornalistas, tentaram prejudicar a entrevista. Perguntavam-me quanto me tinham pagado, diziam que não valia a pena aquilo para ter o cartão de residente nos Estados Unidos ou que eu estava a embaraçar o país.” No derradeiro jogo o tom subiu, garante, e alguns daqueles adeptos favoráveis ao governo islâmico do Irão tornaram-se físicos e registaram-se agressões, mostraram vídeos que circulavam nas redes sociais. A polícia interveio timidamente.

A seleção iraniana viveu sob intensa pressão o Mundial do Catar
David Ramos - FIFA
“Creio que ficou óbvio para toda a gente que o Catar estava do lado do regime islâmico”, continua Saeed Kamalinia. “Quando havia um conflito, a polícia chegava e não fazia qualquer detenção, mas nos nossos casos, sendo um crime para eles andar-se com uma t-shirt, ficámos horas lá a responder a perguntas e a assinar papéis."
Jason Brodsky, especialista em Médio Oriente e diretor de política da ONG norte-americana United Against Nuclear Iran, diz à Tribuna Expresso que houve leaks da Televisão Internacional do Irão dando conta do plano de colaboração entre agentes da segurança iraniana e instituições de segurança do Catar durante o Campeonato do Mundo. “Isso é motivo de preocupação dada a história de assassinatos e raptos extraterritoriais de Teerão”, explica. Sobre as vozes que denunciam uma diferença quanto aos tratamentos a iranianos das duas trincheiras em Doha, Brodsky visa o regime catarense e menciona o “comportamento inaceitável” de um “importante aliado” dos Estados Unidos que não pertence à NATO.
O hino, a espada e a parede
Dentro da Team Melli, como é conhecida a seleção nacional, a aventura neste pequeno país foi tudo menos tranquila. Os jogadores viveram num castigador e exigente limbo durante estas semanas. Começaram por ficar na mira dos protestantes por se terem encontrado com Ebrahim Raisi, o presidente iraniano, antes da viagem para o Catar, ficando aí catalogados como a seleção do regime e marionetas do poder político. Uma postura descontraída numa sessão fotográfica obrigatória da FIFA agudizou os ânimos dos protestantes, sobretudo nas redes sociais.
Até ao jogo de estreia contra a Inglaterra, houve uma pressão sufocante sobre os futebolistas, como se estivessem em julgamento permanente e obrigados a tomar decisões. O hino estava no centro da questão e acabou por não ser cantado pelos futebolistas nesse primeiro jogo, o que lhes permitiu marcar uma posição, mas também gerar mais desamores por parte dos que queriam mais gestos e, claro, dos iranianos que apoiam o regime. “Não cantaram no primeiro jogo, mas foram provavelmente pressionados para cantar nos outros jogos, o que mostra que a equipa estava entre a espada e a parede”, reflete Brodsky. “Muitos iranianos e aqueles na diáspora têm suspeitas relativamente à seleção porque é usada pelo regime como ferramenta de propaganda.”
O massacre nas redes sociais e as pressões que chegavam por terceiros eram diários. Houve até imagens manipuladas para prejudicar a reputação daqueles homens, surgindo como carrascos ensanguentados às ordens do regime. A derrota por 2-6 com os ingleses foi dura, mas permitiu uma ressaca luminosa. A preparação dos jogos ganhou outra normalidade. Os jornalistas, nas conferências de imprensa, continuavam a fazer perguntas delicadas e esperavam uma posição concreta dos atletas, que iam vivendo um implacável exercício de inteligência emocional.
Havia tensão nas salas onde se faziam perguntas e davam respostas. Carlos Queiroz, tentando desviar o foco dos seus jogadores, chegou a sugerir a uma jornalista inglesa para perguntar algo sobre o Afeganistão ao selecionador inglês. Depois, Jürgen Klinsmann, ex-futebolista e ex-selecionador dos Estados Unidos, contribuiu para o foco da equipa ao criticar a cultura iraniana e a atitude dos iranianos nos jogos de futebol. Nos entretantos de tudo isto, os futebolistas tinham de jogar futebol. E assim conseguiram uma vitória histórica contra o País de Gales, lutando até ao fim pela passagem aos oitavos de final.
Quando o Irão caiu finalmente no Mundial, uma parcela do povo iraniano saiu à rua para celebrar a vitória dos Estados Unidos, celebrando no fundo mais uma derrota para o regime. Mehran Samak, de 27 anos, foi assassinado em Bandar Anzali com uma bala na cabeça por pessoal de segurança, anunciou a Iran Human Rights, assente “em várias fontes independentes”. Era amigo de infância de Saeed Ezatolahi, o capitão da seleção iraniana que disputou este Campeonato do Mundo. "Depois da derrota amarga, a notícia da tua morte incendeia o meu coração”, escreveu o futebolista nas redes sociais. “Um dia, as máscaras vão cair, a verdade será revelada. Isto não é o que a nossa juventude merece. Isto não é o que a nossa nação merece.”