Há 14.520 dias que certo cidadão anda à face desta terra. Um cidadão que se tornou alto e esguio, já assim o era quando tomou o avião do outro lado do Atlântico, e por cá foi aliando a rapidez e obstinação à linda arte de secar adversários.
E à longevidade.
Com 39 anos, nove meses e dois dias, Kepler Laveran de Lima Ferreira, Pepe de diminutivo - e talvez o único diminutivo que lhe possamos atribuir -, torna-se esta segunda-feira no jogador mais velho a vestir a camisola da seleção nacional num Mundial, no jogo frente ao Uruguai, que marca também a sua internacionalização número 130. Só Cristiano Ronaldo e João Moutinho têm mais.
O rapaz nascido em Maceió há quase quatro décadas já era o mais veterano dos internacionais portugueses, distinção que é sua desde 11 de novembro de 2021, num jogo com a Irlanda em que não guardará as recordações mais cor de rosa: foi expulso, uma raridade nos seus mais de cem jogos pela seleção nacional - aconteceu apenas numa outra ocasião, no Mundial de 2014, frente à Alemanha. Agora, um ano e uns pozinhos depois, volta a destronar Vítor Damas nesse galhardete de vetustez. O guardião do Sporting tinha 38 anos quando defendeu a baliza portuguesa contra Polónia e Marrocos no de má memória Mundial de 1986.
Na altura, o titular até era Manuel Bento, que não era muito mais novo que Damas (menos de um ano os separavam) mas uma lesão grave num treino afastou o homem que dedicou quase uma vida toda de jogador ao Benfica. Com a eliminação precoce de Portugal na canícula mexicana, o Mundial de estreia do veterano Vítor Damas tornou-se curto.
Pepe é outra história. O central vai para o seu quarto Mundial depois de vestir a camisola de Portugal pela primeira vez em 2007, chamado por Luiz Felipe Scolari. Não sem a polémica do costume, numa altura em que apenas três jogadores nascidos no Brasil tinham jogado pela seleção nacional. O último havia sido Deco. O defesa tinha então 24 anos e fazia a primeira época no Real Madrid, que o veio buscar ao FC Porto, após três épocas a titular ali.
Pepe em movimento acrobático na estreia pela seleção, em novembro de 2007
Paul Gilham
A primeira internacionalização, diga-se, foi num daqueles jogos em que a dicotomia resultado/exibição mais deixou os portugueses intrigados. Em pleno Estádio do Dragão, Portugal não foi além de um nulo frente à Finlândia. Pepe jogou os 90 minutos e não foi por ele que o objetivo mais importante daquela noite não foi cumprido: com aquele resultado, Portugal qualificava-se para o Euro 2008, mas a exibição foi tão, mas tão cinzenta, frente a uma seleção em que a grande figura era um já veterano Jari Litmanen, que a equipa seria arrasada no final por adeptos e comentadores.
Tudo isto deu origem a uma das conferências de imprensa mais icónicas do futebol português, que nos deixou de legado um chavão inesquecível: vendo-se criticado pelos jornalistas, por ter passado o grupo em 2.º atrás da Polónia, Luiz Felipe Scolari lançou o imortal “E o burro sou eu?”.
“Nós tivemos o domínio do jogo todo. Todo o jogo! Que chances tiveram eles? Uma equipa que tem de ganhar o jogo e não arrisca nada, não faz nada para ganhar… E o burro sou eu? O ruim sou eu? O errado sou eu? O péssimo treinador sou eu? E Portugal classificou-se na baía das almas. Pelo amor de deus… como vocês estão mal acostumados”, vociferou.
Sobre a estreia de Pepe, o brasileiro foi mais comedido, talvez face à tensão do momento: “Foi ótima, ótima. Personalidade, dentro daquilo que imaginámos do jogo”.
Quinze anos e 129 jogos depois, personalidade é algo que continua a sobrar a Pepe, que chega ao Mundial 2022 num ano difícil, pontuado com lesões. No último mês e meio conta com três minutos com o FC Porto e mais 45’ na segunda parte do jogo de preparação da seleção nacional com a Nigéria, na véspera da viajem para o Catar.
Mas Fernando Santos não dispensa a experiência de Pepe, que diz ser um dos líderes do balneário de Portugal, “um monstro”, como frisou na antevisão ao jogo com o Uruguai. Um monstro que anda há 14.520 dias por cá e que, com o infortúnio de Danilo, vai voltar a fazer história por Portugal, naquela que será, muito provavelmente, a sua última grande competição pela seleção nacional.