Finalmente Sha’Carri Richardson: o extravagante talento adiado pelas dores da vida já tem a sua medalha de ouro nos 100 metros
picture alliance/GETTY
Há dois anos Richardson era uma das maiores favoritas a figura nos Jogos Olímpicos de Tóquio, mas uma polémica suspensão por consumo de canábis, contestada por outros atletas e até políticos, deixou-a de fora dos 100 metros. O sucesso da atleta que pode ser a verdadeira sucessora de Usain Bolt, na forma de correr e no carisma, chegou nos Mundiais de Budapeste. Aos 23 anos e a um ano de Paris, o mundo finalmente viu Sha’Carri
É virtualmente impossível suceder em títulos e carisma a Usain Bolt e há muito que os 100 metros procuram um novo herói. Christian Coleman, campeão mundial em 2019, não esteve nos Jogos Olímpicos de Tóquio, a contas com uma suspensão por ter falhado vários controlos antidoping. O italiano Marcell Jacobs, surpreendente campeão olímpico em 2021, nem sequer foi à final dos Mundiais que estão neste momento a decorrer em Budapeste. Nem ele nem Fred Kerley, o norte-americano campeão mundial em 2022.
Mas isto é porque estamos a olhar para o lado errado. Porque se há talento e carisma a transbordar naqueles meros 10 segundos entre o tiro de partida e a meta, ele está quase todo nos 100 metros femininos. Em Tóquio foi assim, com o embate entre as jamaicanas Elaine Thompson e Shelly-Ann Fraser-Pryce a iluminar as pesadas e quentes noites de atletismo no Estádio Olímpico. Fraser-Pryce, campeã olímpica em 2008 e 2012, tentava algo que nenhuma outra mulher alguma vez havia conseguido, um terceiro ouro olímpico nos 100 metros, o primeiro depois de ser mãe, em 2017, o primeiro depois de no Rio 2016, em que mesmo com uma grave lesão num dedo do pé foi bronze, não ter conseguido igualar o feito de Bolt, com três títulos consecutivos no hectómetro.
No Rio de Janeiro quem se alavancou para o ouro no agora Estádio Olímpico Nilton Santos foi Thompson, altiva mas bem menos garrida que Fraser-Pryce, conhecida pela apetência por longos cabelos de cores que desafiam o arco-íris. E em Tóquio, perante o possível acontecimento histórico, uma mãe campeã olímpica nos 100 metros, e pela terceira vez, Thompson disse “não”. Venceu e agora ela própria está no caminho desse feito inédito, caso se qualifique para os Jogos Olímpicos de Paris, daqui a um ano.
Acontece que a final dos 100 metros femininos de Tóquio, onde o pódio foi totalmente jamaicano, com Shericka Jackson no 3.º lugar, correu-se tolhida daquela que seria uma das possíveis figuras dos Jogos, uma cara nova da velocidade no feminino, tão rápida quanto extravagante, carismática e polémica. Sha’Carri Richardson, então com 21 anos, assistiu à final em casa, apesar de ter arrasado nos trials norte-americanos, onde se candidatou a primeira atleta dos Estados Unidos a ganhar o ouro olímpico no hectómetros desde Gail Devers em Atlanta 1996.
Tudo porque a 1 de julho, a Agência Norte-Americana Antidopagem, a USADA, anunciou que a atleta, que desde jovem, com recordes mundiais e universitários ia criando um falatório pouco visto, havia testado positivo a THC, a substância ativa presente na canábis. Apesar dos apelos de outros desportistas e até de políticos, visto que não existe evidência científica que a canábis melhora o desempenho desportivo, Richardson foi mesmo suspensa por 30 dias, com os resultados dos trials a serem apagados. O sonho da estreia olímpica morria ali para Sha’Carri, depois de dias e dias em que foi se tornando numa estrela, pela sua corrida infernal, mas também pela sua figura excêntrica.
O cabelo de cores vivas, quentes, tão explosivas quanto a sua passada na pista, as unhas longas, emulando a sua heroína, a malograda Florence Griffith-Joyner, ainda hoje recordista mundial dos 100 metros, com 10.49 segundos. A atitude sem remorsos ou desculpas. Tudo contribuiu para criar o culto em torno de Sha’Carri como a sprinter mais capaz de tornar o atletismo de velocidade cool de novo. Mas tudo ficou adiado.
Dois anos de pernas para o ar
Adiado até esta segunda-feira, quando Sha’Carri Richardson, a correr na pista 9, a periferia do atletismo, pouco habituada a forjar campeões mundiais, surpreendeu Shericka Jackson e Fraser-Pryce, vindo de trás para a frente para garantir o seu primeiro grande título internacional nos 100 metros, dois anos depois da desilusão que foi a não presença em Tóquio.
Nas meias-finais, um arranque em falso quase a surpreendia - foi apenas 3.ª e passou à final na repescagem por tempos - mas na corrida decisiva, naquela pista em que ninguém é visto, tido ou achado, Richardson prevaleceu, batendo o recorde dos campeonatos, com 10.65 e colocando-se no grupo das cinco melhores de sempre nos 100 metros. Com longas tranças, mas sem a cabeleira de cores berrantes com que costuma competir.
FABRIZIO BENSCH/REUTERS
Há um ano, Sha’Carri não conseguiu entrar na equipa norte-americana para os Mundiais de Eugene. Ainda arrumava a sua vida, virada de pernas para o ar naquele verão de 2021. Poucos dias antes de conseguir um apuramento olímpico que depois não se concretizou, a atleta nascida em Dallas há 23 anos soube da morte da mãe biológica, que a abandonou em criança. Foi um jornalista que, inadvertidamente, lhe deu a notícia, durante uma entrevista. O momento foi “chocante” e “um gatilho”, revelaria mais tarde ao canal NBC. O tema era “muito, muito sensível” e “confuso” para a atleta, que assumiu que ter fumado canábis numa altura em que precisava de “esconder a dor”.
Ruidosa no que diz, Sha’Carri não usou as feridas pessoais para se desculpar dos seus atos. “Eu sei o que fiz e sei que é suposto não o fazer”, explicou na entrevista à NBC. “Não posso fazê-lo e mesmo assim tomei essa decisão. Não estou a desculpar-me ou a procurar qualquer tipo de empatia no meu caso”, atirou ainda. No estado do Oregon, onde tudo terá acontecido, é permitido o consumo de canábis, mas a USADA tem entendimento diferente.
Em 2023, mesmo depois de começar o ano a ser expulsa de um avião após uma altercação com um comissário de bordo, apostou no lema “ela não está de volta, está melhor”. Em abril, a diminuta atleta, de apenas 1.55m, correu em 10.57 segundos, que seria o quarto tempo mais rápido da história se o vento não estivesse acima do regulado. Semanas depois garantiria a sua primeira vitória na Diamond League, em Doha. O ouro nos Mundiais foi sofrido e épico, mas estava apenas adiado. “Era apenas eu que estava a atrapalhar o meu caminho”, frisou em maio passado. Em Budapeste provou-o.
Andy Lyons
Tudo isto a um ano de Paris, onde a final dos 100 metros femininos tem tudo para ser um dos grandes momentos dos Jogos, com Thompson, Fraser-Pryce e Richardson possivelmente a lutarem pela vitória e pela história olímpica. As verdadeiras sucessoras de Bolt estão aqui.
O papel da avó, o quadro da tia e as suspeitas
Criada pela avó Betty, para cujos braços correu quando em 2021 se qualificou para Tóquio, é a ela que Richardson deve o gosto pela corrida. Explica o “Washington Post” que foi Betty que um dia lhe mostrou um velho quadro onde descansava um ror de medalhas que uma tia havia ganhado na sua juventude. Sha’Carri sentiu ali que também queria juntar todo aquele metal.
Estudou e competiu na Universidade de Louisiana State. Ali, com apenas 19 anos, já era a décima mulher mais rápida do mundo. Antes disso, na adolescência, tentou o suicídio, assumiu numa entrevista, com a dor do abandono por parte da mãe ainda muito presente.
Com o profissionalismo vieram as primeiras polémicas. Sha’Carri é treinada por Dennis Mitchell, um antigo sprinter olímpico, medalha de ouro nos 4x100 metros em Barcelona 1992, que em 1998 foi suspenso após um controlo positivo a testosterona e viu-se ainda dentro de outros processos judiciais envolvendo práticas de doping. Richardson não adora responder a perguntas sobre o treinador mas não deixa de o defender publicamente, garantindo que ninguém terá de se preocupar em ver o seu nome ligado a práticas de dopagem. Quando deixar a competição, gostava de ficar ligada à psicologia desportiva, disse à “Dmagazine”, porque a sua saúde mental lhe trouxe muitas lições.
Em Budapeste, Sha’Carri ainda pode agarrar-se a mais duas medalhas, nos 200 metros e nos 4x100. Para deixar definitivamente a dor para trás e tornar-se naquilo que em 2021 todos previam: na mais entusiasmante sprinter do mundo.