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Mikaela Shiffrin, a rainha da neve que não esquece o abraço do pai: “Associar ganhar a estar mentalmente bem e perder a estar mal é errado”

A esquiadora norte-americana, de 27 anos, tornou-se esta terça-feira na recordista de vitórias na Taça do Mundo feminina, dando continuidade a um percurso cheio de títulos e glórias. Com uma carreira impulsionada pelo pai, a golden girl viveu “um pesadelo” com a morte deste, confessando ter “uma lesão na alma”. Nos Jogos de Pequim, Shiffrin errou como nunca havia feito e voltou a casa sem medalhas, mas rejeita ter voltado aos triunfos por ter “dado a volta por cima" mentalmente

Pedro Barata

Millo Moravski/Agence Zoom/Getty

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Mikaela Shiffrin tinha quatro anos quando esquiou pela primeira vez sozinha. A estreia foi breve e terminou com a rapariga do Colorado caindo e ficando presa de pernas para o ar. Naquele instante, pensou que ficaria ali “para sempre”, contou ao “The Players' Tribune”. Até que uma mão a puxou. Era o pai, que a levantou.

“Queres ir para casa?”, perguntou Jeff Shiffrin à filha.

Nooo”, respondeu Mikaela, que por alguma razão era carinhosamente tratada pelo pai como Princess No.

A partir daquele momento, a jovem Shiffrin começou a apaixonar-se pela arte de descer mantos brancos a alta velocidade. Passou muito tempo longe de casa, sempre apoiada pelos pais, amantes dos desportos de inverno. Quando tinha nove anos, escreveu no seu diário: “Quero ser a melhor do mundo”.

O tempo passou, o fato roxo com que disputou as primeiras provas foi-se transformando em símbolos dos Estados Unidos da América, a queda inicial tornou-se em constantes ziguezagues supersónicos. E Mikaela, sempre debaixo do conforto paterno, tornou-se a melhor do Colorado, a melhor dos EUA, a melhor do mundo. A melhor de sempre.

Ao vencer esta terça-feira o slalom gigante em Kronplatz, em Itália, a esquiadora norte-americana chegou aos 83 triunfos em provas da Taça do Mundo feminina, um novo máximo histórico. No Tirol do Sul, bem perto da Áustria, a golden girl superou o registo de 82 vitórias da compatriota Lindsey Vonn, numa descida onde foi 0,45 segundos mais rápida do que a suíça Lara Gut-Behrami e 1,43 segundos mais veloz do que a italiana Federica Brignone.

No pódio, colocaram-lhe uma coroa na cabeça, símbolo do reinado que tem sobre a velocidade nas neves. Shifrrin, a única atleta, homem ou mulher, a ter vencido corridas da Taça do Mundo nas seis disciplinas — slalom, slalom gigante, downhill, super-G, combinado e slalom paralelo —, está a apenas três triunfos dos 86 de Ingemark Stenmark, o sueco que é o mais titulado de sempre na Taça do Mundo, englobando homens e mulheres.

Alain Grosclaude/Agence Zoom/Getty

É mais um feito para um palmarés glorioso, marcado por uma catrefada de êxitos, que se sucedem como se sucedem as portas que Shiffrin vai contornando à medida que desenha trajetórias perfeitas, seja a competir, seja fugindo de dinossauros em compromissos comerciais dignos da estrela que é.

Aqui vai um resumo.

Em 2011, pouco depois de cumprir 16 anos, sagrou-se campeã nacional de slalom, tornando-se na mais jovem esquiadora a ganhar um título nacional; em 2014, nos Jogos de Sochi, tornou-se na mais jovem campeã olímpica do slalom, aos 18 anos e 345 dias; em 2018, em Pyeongchang, venceu o ouro no slalom gigante e a prata no combinado alpino; é a mais condecorada esquiadora alpina em campeonatos do mundo na história dos EUA, com um total de 11 medalhas, seis delas de ouro; é a única atleta — homem ou mulher — com vitórias nas seis disciplinas na Taça do Mundo de esqui alpino (slalom, slalom gigante, downhill, combinado alpino, super-G e slalom paralelo); é a esquiadora, homem ou mulher, mais nova de sempre a vencer 50 provas da Taça do Mundo.

A realidade era o pesadelo

A vida de Mikaela foi, até 2020, uma constante ascensão, inversamente proporcional às trajetórias que a permitiam subir. Só que, em fevereiro de 2020, Shiffrin estava em Itália com a mãe e o irmão ligou-lhe. E o irmão “nunca” lhe liga, realça a esquiadora à “The Players's Tribune”.

O pai tinha acabado de ter um acidente grave. A mulher e a filha regressaram imediatamente ao Colorado. “Só queria poder dizer-lhe adeus. Dar-lhe um último abraço. Era como quando vês algo num filme, começas a chorar e pensas 'é tão triste, mas nunca nos acontecerá´. Mas aconteceu", recorda a campeã.

Pouco depois de Mikaela e Eileen chegarem, Jeff Shiffrin faleceu. Sempre à “The Players's Tribune”, a esquiadora conta qual foi ”a primeira coisa que fez" depois da morte: “Fui ao armário dele e enterrei a minha cara nas roupas. Respirei fundo, senti o cheiro dele, pensei nele e solucei. Só queria sentir-lhe o cheiro, ouvir-lhe a voz, lembrar-me de tudo. De tudo. Deixou-nos sem aviso. Um acidente. Uma tragédia”.

Shiffrin, em 2017, ladeada pela mãe, Eileen, e o pai, Jeff

Shiffrin, em 2017, ladeada pela mãe, Eileen, e o pai, Jeff

Helen H. Richardson/Getty

Com a partida do pai, Mikaela deixou de querer esquiar, comer ou dormir. “Tinha medo” dos próprios sonhos, porque neles o pai estava vivo e, quando acordava, o pesadelo era a realidade.

“Era como ter uma lesão na alma”, descreve. E essa ferida levava a uma dúvida que Shiffrin não queria ver respondida.

Quando está no topo de uma pista branca, olhando o horizonte, a norte-americana habituou-se a “esvaziar” a cabeça antes de ziguezaguear o mais rapidamente possível. Só que, depois da morte do pai, ganhar significaria “vencer numa realidade onde ele não estava lá” para partilhar a felicidade. Não haveria alegria familiar, não haveria um abraço do homem que a fizera levantar depois da primeira queda.

Ganhar provas era, desde sempre, não só uma questão de glória, mas uma questão de sorrisos partilhados. Agora, ganhar provas era entrar num território desconhecido. E Shiffrin tinha medo de o conhecer. “Perguntava-me se queria mesmo existir nessa realidade”, confessou.

Conhecer a derrota em Pequim

Este sentimento durou “dois ou três anos”. E terá sido do conhecimento público nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, em 2022.

Shiffrin chegou à China como máxima favorita. No entanto, a sua participação no slalom durou segundo segundos, antes de cometer um erro na abordagem à porta 5 e terminar a prova. No slalom gigante, a norte-americana durou 10 segundos, até que novo equívoco a levou a abandonar.

Na primeira ocasião, ficou parada, fitando o local do erro durante mais de 10 minutos. Na segunda, lançou um grito de frustração que ecoou pelas montanhas cheias de neve artificial dos Jogos de Pequim. O resto da competição quadrianual seguiu esta tendência e a multi-medalhada voltou para casa sem qualquer medalha.

Mikaela Shiffrin depois do erro que a levou à desclassificação no slalom em Pequim 2022

Mikaela Shiffrin depois do erro que a levou à desclassificação no slalom em Pequim 2022

A frustração de Pequim 2022 era completamente desconhecida para alguém que cresceu a ganhar. “Não costumo falhar, nunca tinha vivido esta situação, não sei como lidar com ela”, atirou depois de uma das desclassificações.

Desde dezembro de 2011, quando tinha 16 anos, que não era desclassificada de duas provas técnicas de forma consecutiva. Entre os Jogos de 2018 e 2022, só por duas vezes não conseguira terminar competições.

No slalom do combinado alpino, voltou a cair, desta feita na porta 10. “Neste momento, sinto-me uma piada. Durante toda a minha carreira, apenas tive de confiar no meu esqui e as coisas surgiam”. Subitamente, o esqui estava-lhe a falhar.

E faltava-lhe alguém. “Neste momento, gostava de ligar ao meu pai, o que não torna as coisas mais fáceis. Provavelmente, ele dir-me-ia para seguir em frente. Mas ele não está cá para o dizer…”, lamentou depois de uma das competições.


As críticas vindas de um país ultra-exigente para com os seus campeões não tardaram. Shiffrin partilhou vários insultos que recebeu. No mundo do desporto, Simone Biles, que nos Jogos Olímpicos de Tóquio abdicou de participar em várias provas para cuidar da sua saúde mental, escreveu uma mensagem de força para a sua compatriota — nos Jogos de verão Shiffrin havia feito o mesmo, apoiando a ginasta. Também Lindsey Vonn se posicionou ao lado de Mikaela.

No final dos Jogos, a esquiadora escreveu que “falhar não é o fim do mundo” e que voltaria porque “aquelas primeiras nove portas [antes de cair] foram espetaculares”. É “aí” que quer estar. “Sou teimosa como o caraças”, frisou a norte-americana, fazendo juras de não desistir

Mas… O que aconteceu em Pequim? Mikaela não sabe e contou-o no “The Players' Tribune”.

“As pessoas querem algum tipo de resposta. E, genuinamente, não tenho. Poderia dar a resposta aos jornalistas que sempre dou. Poderia fazer uma cara corajosa e dizer algo genérico. Mas a verdade é que não sei. São dois minutos da tua vida. Dois minutos. Treinas quatro anos para dois minutos. Dois minutos num dia qualquer. Desces a montanha, tentas ir rápido, não fazer erros. Às vezes, ganhas o ouro, como eu fiz. Noutras, cais, como eu fiz”.

Após Pequim, os resultados voltaram a sorrir à mulher do Colorado, que conquistaria a Taça do Mundo. Aí, as pessoas diziam-lhe que “tinha dado a volta por cima” e que “estava mentalmente muito melhor”.

“Estarei eu melhor? Associar ganhar a estar mentalmente bem e perder a estar mal é errado. A verdade é que não estou bem nem mal. Depende dos dias e a verdade é que não tem nada a ver com o quão rapidamente eu desço uma montanha”, sublinha.

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O ano a seguir a Pequim foi cheio das medalhas que se habituou a recolher. Venceu nove das 20 provas em que alinhou na presente temporada e até de fora do mundo dos desportos de inverno é vista como referência. Iga Swiatek, líder do ranking mundial de ténis, elogiou, no Open da Austrália, o que Shiffrin “tem feito pela saúde mental”, o que “ajuda outras atletas”.

Mikaela Shiffrin, de 27 anos, quer competir, pelo menos, até aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2026, em Milão e Cortina, em Itália. As trajetórias que descreve, pintando curvas na neve enquanto desafia os limites do ser humano em cima de dois esquis, fariam as delícias de qualquer amante de geometria.

O armário de medalhas da golden girl mostra dois ouros e uma prata olímpicos e seis ouros, duas pratas e três bronzes em Mundiais. O triunfo no slalom em Sochi, em 2014, fê-la entrar para a história com 18 anos, mas não é dessa glória que Shiffrin guarda memórias daquele dia.

“Na verdade, aquilo do que me lembro — e que nunca me esquecerei enquanto for viva — foi que a primeira pessoa que abracei foi o meu pai. Ele estava a chorar. Apertou-me contra ele, estava tão orgulhoso. Ainda consigo sentir aquele abraço”.