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Liga dos Campeões

As feras e o Leão de Milão nada puderam fazer contra a maquinaria do Inter (de regresso a uma final da Champions 13 anos depois)

Depois da fabulosa obra dos nerazurri nos anos 60 e do sublime 2010 arquitetado por José Mourinho, o Inter apurou-se esta noite para a sexta final do torneio da sua história, ao vencer novamente o AC Milan, no Giuseppe Meazza, por 1-0. O golo que confirmou o que parecia inevitável foi de Lautaro Martínez

Hugo Tavares da Silva

Ciancaphoto Studio

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O céu é azul e negro em Milão. Os pássaros cantam azul e negro. Os relvados são azuis e negros. A febre é azul e negra. A final da Liga dos Campeões terá certamente de um lado uma farda azul e negra, o que não acontece desde 2010, quando José Mourinho viveu talvez a sua última grande noite. Depois de vencer por 2-0 no San Siro, o Inter venceu esta noite no Giuseppe Meazza, que já se sabe é o mesmo estádio, e garantiu a passagem à final da Liga dos Campeões, o que já acontecera em cinco ocasiões na história do clube.

Um tiro de Theo Hernández, quando ainda o cronómetro aquecia, regou as raízes de André Onana, que parecia uma árvore a adorar o redondo projétil. O aviso estava dado. E o Inter, bem calçado depois da primeira mão, aceitou recuar. O Milan tinha a bola, mas não tinha espaço. Era a maior das armadilhas para Rafael Leão, a principal esperança dos rossoneri que esteve ausente no primeiro jogo.

Uma correria de Sandro Tonali pela esquerda, superando Henrikh Mkhitaryan (substituído por lesão por Brozovic ainda no primeiro tempo), fez lembrar (se quisermos exagerar na gentileza) Clarence Seedorf. A potência elegante ao serviço de dois belos pés. O médio, em tempos idos comparado a Andrea Pirlo, meteu na área a bola que só ansiava por um toque gentil e afortunado. Brahim Díaz surgiu então na altura certa. Bateu na bola, esboçou um gesto precipitado que augurava a festa. A bola não amou o contacto e deixou-se travar por Onana, já emancipado naquela floresta romântica que representam aquelas vestimentas todas naquele estádio, ora San Siro, ora Giuseppe Meazza.

A generosidade e a marcha atrás dos homens de azul e preto, abençoados com uma camisola sem o ruído de um patrocínio, terá certamente levado alguém a lembrar-se do Inter de José Mourinho em 2010, que injustamente ficou colado àquela inusual postura defensiva de Camp Nou. Este Inter de Simone Inzaghi, como recuava, tinha metros para correr e promover as combinações entre Edin Dzeko e Lautaro Martínez, que operam de memória.

Num jogo do gato e do rato, ou do Leão e da tenra presa, Rafael conseguiu iludir Denzel Dumfries com dois movimentos que obedecem ao velhinho futebol humano e que lhe permitiram abrir finalmente, aos 21’, espaço para uma correria prometedora. Apesar de não ter dado sumo do bom, o internacional português, o melhor da Serie A no ano do scudetto do Milan de Pioli, deu sinais de que teria de ser criativo para receber a bola numa zona vantajosa. Raramente aconteceu.

O relvado estava impecável, digno de um Derby della Madonnina que conta muitas histórias. Uma das mais importantes aconteceu há 20 anos, a 13 de maio de 2003, quando um golo Andriy Shevchenko, depois de um passe sublime de Seedorf, colocou a equipa de Carlo Ancelotti na final da Liga dos Campeões. Sérgio Conceição foi titular nos dois jogos da meia-final, tal como Rui Costa, sempre com as caneleiras ao relento.

Sheva vs. Inter, em 2003

Sheva vs. Inter, em 2003

Phil Cole

O golo do empate de Obafemi Martins foi inútil, pois nessa altura os golos fora faziam as suas maravilhas. “Nós éramos muito fortes no campo e toda a gente via isso”, contou o avançado ucraniano, esta terça-feira, ao “The Guardian”. “Mas o segredo era ser forte dentro do balneário também. Não havia só um líder, mas muitos. E isso fez a diferença”, revelou o homem que diz lembrar tudo, tudo, até de como o coração latia.

A bola de então era a tal do anúncio da Nike em que Louis van Gaal era o cabecilha de uma operação secreta, que meteu ao barulho um mui ‘Missão Impossível’ Lilian Thuram, uma cueca de calcanhar de Luís Figo, uma receção dos deuses de Pep Guardiola, as travessuras habituais de Dwight Yorke e Andy Cole, a cola no peito de Nakata, um truque mirabolante de Edgar Davids e uma bala de Olivier Bierhoff. Ahh, a nostalgia…

Com exceção para uma pisadela maldosa de Francesco Acerbi em Tonali (tal como Materazzi fez com Sheva há 20 anos), o respeito esta noite entre eternos rivais era admirável. O jogo estava rasgadinho aqui e ali, mas havia sempre um toque respeitoso, implorando por perdão sem implorar. Nicolò Barella, tal como fez na Luz, ia exibindo uma maturidade e qualidade impecáveis. Antes do intervalo voltou a surgir o furacão Rafael Leão. No corpo a corpo com Matteo Darmian, deixou o pobre rival no chão. Depois, num nobre bailarico, trocou as voltas a Acerbi e bateu na baliza, com a canhota. A bola passou perto do poste. O Inter, o carrasco de FC Porto e Benfica nesta Liga dos Campeões, respondeu com uma dupla oportunidade.

Os guarda-redes não tiveram demasiado trabalho. O Inter, sereno e paciente, ia controlando tudo, mantendo bem vigiado Olivier Giroud, o senhor dos golos bonitos, e principalmente mantinha muito longe da baliza Rafael Leão, que não esteve inspirado, mesmo quando surgiu pela direita para sacudir o esqueleto impenetrável dos nerazzurri. A bola mantinha-se mais nos pés da rapaziada de vermelho, mas os remates pingavam mais do outro lado. Os pontapés desafinados e Mike Maignan iam mantendo o zero-zero.

Ciancaphoto Studio

Os treinadores mexeram, mas o jogo cinzento nem por isso melhorou. Em 2003 as substituições foram ainda mais desoladoras: Héctor Cúper lançou Dalmat, Kallon, Martins, enquanto Ancelotti apostou sabiamente em Ambrosini, Serginho e Brocchi. Rivaldo, figura do título mundial do Brasil no ano anterior, nem entrou no relvado do Giuseppe Meazza.

A entrada de Romelu Lukaku, aos 66’, revelou-se chave, pelas muitas lutas que foi protagonizando, mas essencialmente pelo desconforto que gera à sua volta. Apenas oito minutos depois de entrar, com toda a calma do mundo na área, uma serenidade digna de alguém especial, respirou fundo e tocou para Lautaro Martínez, com quem tem um entendimento e uma relação muito ricos. O argentino, campeão do mundo, rematou com o pé esquerdo e inaugurou o marcador, levando à loucura as muitas testemunhadas que por ali estacionaram esta noite. Pioli reagiu imediatamente: Divock Origi e Alexis Saelemaekers para o relvado.

Ouvia-se “olé, olé, olé, Inter, Inter”. Os tiffosi do Internazionale não vivem tamanha alegria desde 2010, quando Mourinho assinou por baixo daquela época memorável, com vitórias ainda na Coppa e na Serie A. Antes disso, Helenio Herrera conduzira o clube ao título em 1964 e 1965, o último contra o Benfica, um jogo sentenciado pela fortuna de Jair e o oposto de fortuna para Costa Pereira. A final foi, para além de ter acontecido debaixo e em cima de água, salpicada pela qualidade de Germano.

O Inter tem uma relação interessante com esta competição. Depois daquela dupla conquista europeia na década de 60, os nerazzurri chegaram à final de Lisboa, em 1967, onde perderam com o Celtic. Em 1972, voltaram a cair na final, desta vez com o Ajax de Johan Cruijff. Depois, o declínio, amansado por duas meias-finais em 1981 e a tal de 2003, perdidas contra o Real Madrid e Shevchenko e companhia.

O Milan não conseguia incomodar o rival. Foi, aliás, o Inter quem ameaçou aumentar o marcador. Soou o apito final no Giuseppe Meazza, boas notícias para metade da cidade: o Inter está mais uma vez na final da Liga dos Campeões e procurará a quarta vitória no torneio, o que lhe permitiria alcançar o Ajax, ficando apenas atrás de Barcelona (5), Liverpool (6), Bayern (6), Milan (7) e Real Madrid (14).

O rival no derradeiro jogo, agendado para 10 de junho em Istambul, será o Manchester City de Guardiola, um treinador que os italianos eliminaram na tal caminhada de 2010 (transformando Mou no anticristo), ou o Real Madrid do carrasco de 2003, o senhor Carlo Ancelotti, que na quarta-feira se vai transformar no treinador com mais jogos neste torneio.

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