Se “Béla Guttmann” fosse um conto daqueles livros de ficção científica, as páginas teriam uma pele áspera, quase língua de tigre, sangrariam os dedos. Não há volta a dar. Quando o Benfica se aproxima de algo realmente importante na Europa, alguém sacode a memória do húngaro da boina. O futebol é dos mais fantásticos e inverosímeis mundos deste mundo. E o que é sofrível é que o amante deste jogo acredita nessas fábulas, sente o que lhe perguntam ou dizem. Sabias que…? Ora bem. Depois da maldição de Guttmann, o primeiro teste foi em 1965, precisamente numa final da Taça dos Campeões Europeus contra o Inter. Claro, aconteceu o diabo e o inferno a Costa Pereira e os portugueses voltaram para Lisboa maltratados no orgulho.
Esta noite, na Luz, o Benfica ameaçou ser feliz. Tocou bem na bola até começar a desconfiar, até ser previsível (acusando menos energia) e deixar os tigres de amarelo modificarem a natureza do jogo. Os benfiquistas perderam por 2-0, com golos de Barella e Lukaku, e no último suspiro André Onana evitou uma segunda mão mais interessante. Ou seja, encaminha-se o fado que aconteceu nos quartos de final da competição em 1995 (Milan), 2006 (Barcelona), 2012 (Chelsea), 2016 (Bayern) e 2022 (Liverpool). Os encarnados não chegam à semifinal deste torneio desde 1990, quando enganaram muito bem o Dnipro Dnipropetrovsk.
As botas dos futebolistas de encarnado até começaram a beijar mais vezes a bola, sempre abençoada e mais elegante em noite de Champions. Mas alguns acordes da música eram desafinados. Morato, substituto do castigado Nicolás Otamendi, foi um dos que mais errou no passe no início do jogo – Bah deu lugar a Gilberto. O Benfica não chegava à frente, mas mantinha a preciosa ferramenta desta labuta. Os que fardavam de amarelo (sabe-se lá porquê, o amarelo) pareciam investigadores num terreno hostil. Mediam perigos, arquitetavam protocolos. Onana, imitando Diogo Costa no clássico demasiado fresco na lembrança, definia as rotas e os ventos. As bolas longas para Lautaro Martínez e Edin Dzeko eram uma arma importante, as segundas bolas idem. Nicolò Barella e Henrikh Mkhitaryan estavam sempre à espreita. Francesco Acerbi e Alessandro Bastoni, dois canhotos da linha de cinco, eram feiticeiros a fazer chover uns metros à frente (e a pressão do adversário permitia-lhes o tempo precioso para tal).
Os italianos tapavam todos os projetos de vertigem alheios. O meio-campo que passou a encantar o terceiro anel começou a acertar. A coragem de Chiquinho é admirável. O médio voltou a fazer uma voltinha com a bola à Zizou, satisfazendo até ao osso a líbido dos benfiquistas. Rafa desatou a descobrir espaços para acelerar (até cair no anonimato). Fredrik Aursnes ajudou na construção e a abrir buracos (seria cada vez mais discreto, invisível). Do outro lado, embora bem resolvidos com a espera sem bola, aquela coisa tão italiana de antigamente, contam com jogadores belíssimos que também sabiam ferir o sossego lisboeta. Marcelo Brozovic era o cérebro que desmontava a teia magicada por Roger Schmidt.

Will Palmer/Allstar
Um tiro de Rafa, depois de cruzamento de Grimaldo e corte de Dimarco, encontrou a carapaça de Onana. Cheirou a golo, uma fragrância irresistível. João Mário, com a braçadeira de capitão e perante o antigo empregador, ia desenhando o seu jogo silencioso. A certa altura trocou as voltas a Dimarco e a Luz inteira lambeu-o com os olhos. Depois, como todos, caiu, tolerou a banalidade que às vezes atormenta os corpos. O Inter apresentava-se seguro, vigilante, sem grandes sinais de alarmismo, apesar dos seis jogos consecutivos sem vencer. Acerbi, encolhendo os ombros às certezas e ao antidesperdicismo do futebol moderno, disparou com a canhota de longe. Passou perto da barra. Grimaldo ia revelando dúvidas sobre quem deveria fechar, se Dumfries ou Barella. Os italianos iam furando a pressão encarnada.
António Silva, quem sabe inspirado em Germano na final de 1965 contra o Inter (com sorte não teria de ir à baliza também), ia ganhando muitos duelos e resolvia problemas com a bola nos pés. O caráter do jovem futebolista é importante. Gonçalo Ramos ia assinando uma daquelas exibições difíceis para um 9, mais sacrifício e solidariedade do que pão para morder, mas o avançado tentava associar-se com os colegas. Dzeko, do outro lado, tentava fazer o mesmo e por pouco os cruzamentos dos colegas não lhe choviam na cabeça.
Na segunda parte o Inter, que não alcança uma meia-final desde 2010 (Mourinho), surgiu mais protagonista. Parecia o adulto na sala, cheio de certezas e planos realistas. Brilhavam como o sol que não faz doer os olhos. Há qualidade, tanta, nesta gente que vem lá de longe. Bastoni, o tal canhoto que meteu dois olhos na bota e que também é muito jeitoso a defender, tocou na bola para o segundo poste e Barella, um craque que tal como o defesa também é campeão da Europa, cabeceou com muito estilo, 1-0. Odysseas ficou penosamente a ver a bola passar.
O empate só não se deu logo a seguir porque esta história com o Inter parece malfadada. Já dentro da área, nem Grimaldo, nem Ramos ou Aursnes conseguiram tocar para dentro da baliza de Onana um golo que parecia cantado em todas as latitudes do planeta. Já dizia Simões, após a final já mencionada contra o Internazionale de Luis Suárez, Mazzola e Facchetti: “Parece mentira como isto tudo aconteceu”.

CARLOS COSTA
David Neres entrou então, por Florentino (bom jogo com e sem bola), para devolver alguma ginga ao mais previsível e mole Benfica – foi a única substituição de Schmidt, apesar do apagão coletivo. Aqui e ali conseguiu, mas deu pouco sumo. Por esta altura, Simone Inzaghi já colocara em campo Lukaku, Correa e Gosens, um dos ilustres carrascos de Portugal no Euro 2020, opções que mostravam as diferenças. Chiquinho precipitou-se num passe longo para ninguém e Schmidt pediu calma. Notava-se que as águias não tinham a serenidade de outros tempos. A derrota no clássico com o FC Porto não fez bem nenhum, certamente.
Odysseas transformou-se no homem que permitiu ao Benfica manter-se vivo no sonho improvável, que obrigatoriamente vai desaguar ou desaguaria em Nápoles ou outra vez em Milão. O grego travou um contra-ataque que culminou com um remate de Mkhitaryan e ainda duas tentativas venenosas de Dumfries, mas nada pôde fazer contra o penálti de Lukaku, depois de uma bola no braço de João Mário, 2-0.
Perante o desassossego dos jogadores, a Luz desassossegou-se, desassossegando ainda mais os futebolistas, os heróis do povo, ora suspeitos, ora insuspeitos. Ouviam-se assobios, apressavam-se as pernas e as decisões. Cometiam-se até excessos na bancada, com empurrões e insultos a um ou outro elemento da comitiva do Inter que ia descer a escadaria interminável da Luz.
Com a maldição e o veneno da derrota a prender a garganta e o estômago de todos, nos últimos segundos, David Neres fez o que os artistas fazem e empurrou Gonçalo Ramos para a frente, colocando o miúdo dos 25 golos olhos nos olhos com o guarda-redes do Inter. Era uma oportunidade para relançar a eliminatória, para amansar o embrutecido orgulho. Onana agigantou-se novamente, parou a bola e tudo desabou, antecipando assim o fado que acontece desde 1995.